Começa como comédia a série mais angustiante, dolorosa e triste dos últimos tempos: Bebê Rena (Baby Reindeer, 2024), que teve seus sete episódios de 30 a 40 minutos lançados pela Netflix no dia 11 de abril e ocupa o primeiro lugar no top 10 da plataforma de streaming. Na cena de abertura, Donny Dunn, o personagem de 20 e tantos ou 30 e poucos anos interpretado pelo escocês Richard Gadd, que também assina como o criador, o roteirista e um dos produtores executivos, entra em uma delegacia de Londres. Ele quer fazer uma denúncia:
— Não sei como dizer isso, mas estou sendo perseguido.
— Por um homem ou uma mulher? — pergunta o policial de plantão.
— Mulher.
— Vocês tiveram relações sexuais?
— Não. Ela é mais velha do que eu — rebate Donny, com um sorrisinho maroto.
— Geralmente, não levamos a idade em conta — retruca seu interlocutor.
— Não, claro. Mas eu garanto, não tivemos nenhuma relação.
— Certo. Essa mulher está te perseguindo?
— Sim. Ela vai ao meu trabalho, à minha casa. E manda e-mails o tempo todo — diz o protagonista, já sacando do bolso seu celular.
— Eles contêm ameaças?
— Com certeza. Vou abrir um aleatório. Aqui — ele ergue o aparelho para exibir a mensagem enviada do endereço ma4815162342@yahoo.com: "Acabei de comer um ovo".
O policial, que já parecia fazer pouco caso da situação, ironiza e beberica sua xícara de chá ou café. Donny insiste, afirmando estar muito preocupado:
— Ela precisa de ajuda.
— Quando isso começou?
— Sei lá, há uns seis meses.
— Seis meses? Por que não denunciou antes?
A câmera se aproxima do rosto de Donny, agora sem o mínimo traço do sorrisinho maroto anterior. Seus olhos indicam medo, aflição, dor. A tela fica preta, e então aparece o aviso que contribui tanto para aumentar o fascínio por Bebê Rena (o público, sobretudo na Netflix, é ávido pela exploração de crimes verdadeiros) quanto para provocar um indesejado efeito colateral: "Esta é uma uma história real".
Um flashback nos leva ao The Heart, o fictício pub localizado no bairro londrino de Camden onde Donny trabalha como garçom enquanto sua carreira de comediante não decola. Logo conhecemos Martha Scott (papel de Jessica Gunning), a versão ficcional da mulher que, ao longo de quatro anos, enviou para Richard Gadd cerca de 41 mil e-mails, 350 horas de mensagens de voz, 746 tuítes e 106 páginas de cartas, criando para ele apelidos como o Bebê Rena do título. Martha é obesa, transparece solidão e diz não ter dinheiro nem para comprar um chá.
"É um sentimento arrogante, sentir pena de alguém que mal conhece, mas eu senti. Senti pena dela", afirma o protagonista na narração em off — ferramenta dramatúrgica que confere à minissérie dirigida por Weronika Tofilska e Josephine Bornebusch um caráter confessional e terapêutico: Gadd resolveu processar publicamente seu trauma. Ou traumas, no plural, como veremos mais adiante (alerto que haverá spoilers sobre a trama).
Donny oferece a Martha um chá por conta da casa. Aquele gesto de gentileza, raríssimo em um mundo gordofóbico, ilumina o rosto dela, que passa a ser visto todos os dias no balcão do bar. Estabelece-se uma relação de codependência: Donny também curte a atenção dada por Martha, porque sua vida é uma bosta. Fracassa nos stand-up shows e, sem grana, segue morando na casa da mãe da ex-namorada. "Londres é assim. Não recebe ninguém com tapete vermelho. Você acorda um dia e percebe que é figurante em um elenco de milhões. Quando alguém te vê lá no meio, te vê como a pessoa que você queria ser..." Essa reflexão ajuda a entender relacionamentos tóxicos: às vezes, estamos tão por baixo que qualquer migalha sentimental nos alimenta.
Mas Donny, nos primeiros capítulos de Bebê Rena, esconde dos personagens e do público — ou esconde de si mesmo? — seu momento mais sofrido. Só Martha parece ter perspicácia para enxergar o que se passa em seu íntimo:
— Tem gente que foge arrumando as malas e partindo. Outros fogem ficando no mesmo lugar por muito tempo.
(Repito o aviso sobre spoilers.)
Donny tem ódio e vergonha de si próprio por "ter deixado acontecer" o que aconteceu. Aquilo que acabou por levar ao rompimento com a namorada, Keeley, aquilo que provocou sua repulsa ao sexo, aquilo que arruinou a sua confiança nos outros, aquilo que se tornou uma sombra incontornável, mas que ele não contou à polícia. Como descobrimos no chocante quarto episódio, Donny foi drogado e estuprado por um roteirista renomado, chamado de Darrien na ficção (e interpretado com uma frieza abjeta por Tom Goodman-Hill), que lhe prometia uma porta de entrada no showbiz. O abuso sexual não ocorreu apenas uma vez: mesmo ciente — acordava com o pênis de Darrien na sua boca, por exemplo —, o protagonista continuou visitando seu agressor.
No fundo, embora a relação com Martha ocupe grande parte da narrativa, Bebê Rena é menos próximo de outra produção recente da Netflix, o documentário estadunidense Amante, Stalker, Mortal (2024), sobre o caso de um mecânico que passou a ser ameaçado por uma mulher que conheceu via aplicativo, do que da minissérie I May Destroy You (2020, disponível no Max). Premiada com o Emmy de melhor roteiro, trata-se de outra autoficção britânica criada, produzida e protagonizada por uma vítima de violência sexual, Michaela Coel. Mas enquanto a personagem Arabella empreende uma jornada de autoconhecimento e vingança, Donny Dunn mergulhou no silêncio e foi tragado pela depressão. Enquanto I May Destroy You critica o patriarcado e denuncia a cultura do estupro, Bebê Rena reflete sobre homofobia — vide a insegurança do protagonista quanto a sua sexualidade e o modo como conduz o namoro com uma mulher trans, Teri (encarnada por Nava Mau).
Um dos trunfos da minissérie da Netflix é que Richard Gadd não poupa a si mesmo ao pintar o retrato de Donny Dunn (que ele já havia levado aos palcos de Edimburgo e de Londres, antes da pandemia de covid-19). Através do protagonista, aborda seus preconceitos e suas humilhações. Relembra suas dúvidas paralisantes e cada instante em que poderia ter feito uma escolha diferente e melhor.
Ainda que disfarçada, é a sua história real — e, como bem resumiu o jornalista Stuart Heritage no Guardian, "qualquer programa que afirme abertamente ser baseado em uma história verdadeira sempre convidará detetives da internet". Assim, logo espectadores começaram a levantar suspeitas sobre quem seria a perseguidora de Richard Gadd — ele diz que Martha Scott é uma reinvenção da mulher que o assediou, a quem considera também uma vítima (de problemas de saúde mental), mas, inadvertidamente ou não, espalhou pistas na minissérie: as mensagens e os e-mails que reproduz na tela, com erros de digitação, são da stalker. Em entrevista ao jornal britânico Daily Mail, uma mulher que diz ser a Martha da vida real afirmou estar sofrendo "ameaças de morte e abusos online".
Uma parcela mais agressiva do público atacou via redes sociais o diretor, roteirista e ator teatral Sean Foley, sob a acusação de ser o Darrien da vida real. Amigo de Gadd, ele disse que a polícia está investigando "todas as postagens difamatórias, abusivas e ameaçadoras".
Os ataques online são um problema sério, podem levar a vítima a atitudes desesperadas ou drásticas — e, eventualmente, os agressores transpõem os limites do mundo virtual. Diante desse efeito colateral adverso, Gadd fez um apelo no Instagram: "Pessoas que amo, com quem trabalhei e admiro (incluindo Sean Foley) estão injustamente sendo alvo de especulações. Por favor, não especule sobre quem poderia ser qualquer uma das pessoas da vida real. Esse não é o objetivo da nossa série".
Fazendo coro ao que Michaela Coel disse sobre I May Destroy You ("Espero que as pessoas que tiveram experiências traumáticas assistam a isso e se sintam menos sozinhas"), Gadd, em uma entrevista ao Guardian, lembrou o aconselhamento de uma ONG chamada We Are Survivors:
— Quebrar o silêncio é o primeiro passo, eles me ensinaram. Conversar com alguém ou, se isso for muito assustador, escrever sobre. Quanto mais você tira de dentro (aquela dor), menor fica. Quando você passa por algo como abuso sexual, muito do enfraquecimento pode vir das velhas ideias sobre o que significa ser um homem. Certamente quando percebi que falar abertamente e dizer "Estou lutando" é uma forma de força, descartando a ideia de que a masculinidade era a única forma de sobrevivência, isso foi muito curativo.