À primeira vista, Segredos de um Escândalo é um título bastante banal. Mas como escreveu a colunista Cláudia Laitano em GZH, "é preciso dar uma colher de chá para quem foi encarregado de rebatizar o filme: uma tradução literal de May December (Maio Dezembro) não diria mesmo muita coisa para o espectador brasileiro". Dirigido por Todd Haynes, o longa-metragem que concorreu ao Oscar 2024 de melhor roteiro original — mas merecia ter disputado outros troféus, especialmente os de atriz coadjuvante (Julianne Moore) e ator coadjuvante (Charles Melton) — estreia nesta terça-feira (30) no Amazon Prime Video
Esta é a quinta colaboração entre Todd Haynes, cineasta do romance lésbico Carol (2015) e do documentário de rock The Velvet Underground (2021), e Julianne Moore, ganhadora do Oscar de melhor atriz por Para Sempre Alice (2014). A parceria começou em Mal do Século (Safe, 1995) e inclui Eu Não Estou Lá (2007), inventiva cinebiografia de Bob Dylan, e Sem Fôlego (Wonderstruck, 2017). Antes de Segredos de um Escândalo, o ponto alto foi Longe do Paraíso (2002), ambientado nos anos 1950 e inspirado em dois melodramas de Douglas Sirk — Tudo o que o Céu Permite (1955) e Imitação da Vida (1959). Haynes ilustra a faceta hipócrita, repressora e racista da sociedade estadunidense ao acompanhar uma dona de casa que descobre a homossexualidade do marido e se afeiçoa por um jardineiro negro. O título valeu a Moore a Copa Volpi no Festival de Veneza e competiu em quatro categorias do Oscar: atriz, roteiro original (do próprio diretor), fotografia e música.
May December, explicou Cláudia Laitano, é uma expressão usada nos Estados Unidos como sinônimo de uma relação amorosa com uma notável diferença de idade entre os parceiros (a origem é a canção September Song, de 1938, cuja letra compara as estações do ano com as etapas da vida). Esse é o caso dos personagens interpretados por Moore e Melton em Segredos de um Escândalo, muito familiares a Todd Haynes, cineasta acostumado a retratar tipos pressionados por convenções sociais, pelo conservadorismo, pelo preconceito e por suas próprias pulsões.
Moore encarna Gracie Atherton-Yoo, e Melton é Joe, seu marido 23 anos mais moço. Duas décadas atrás, Gracie, que era esposa e mãe, foi presa por ter seduzido e abusado sexualmente de Joe, que recém estava entrando na adolescência — mas logo se tornou pai. Ao sair da cadeia, a mulher acabou se casando com a vítima, com quem teve mais dois bebês, gêmeos.
Como bem apontou o crítico, professor e montador Milton do Prado em texto publicado e GZH à época da exibição de Segredos de um Escândalo no Festival de Cannes, Haynes não usa uma lente moralista, tampouco emprega uma visão cínica demais. Jamais nos deixa esquecer do quão perturbadora é a relação entre Gracie e Joe, mas mostra também momentos de ternura e até de bom humor. A família tenta conviver harmoniosamente com a comunidade de Savannah, cidade costeira do Estado da Geórgia, nos EUA, com 147 mil habitantes. Quando, logo no começo do filme, chega pelo correio uma caixa com cocô, um recado de como a situação ainda não é bem aceita, a reação do casal é de uma resignação quase cômica.
Gracie e Joe são personagens fictícios, mas o roteiro escrito por Samy Burch (a partir de uma história assinada por ele com Alex Mechanik) é assumidamente baseado em um caso de pedofilia que de fato escandalizou a opinião pública estadunidense na segunda metade da década de 1990. Morta em 2020, aos 58 anos, por câncer de cólon, Mary Kay Letourneau era uma professora de 34 quando foi flagrada pela polícia fazendo sexo com um aluno seu, Vili Fualaau, de somente 12. Também houve prisão, também houve filhos, também houve casamento.
O caso já havia inspirado um filme com o qual o título brasileiro de May December forma uma conexão pertinente: Notas sobre um Escândalo (Notes on a Scandal, 2006, disponível no Star+), dirigido pelo britânico Richard Eyre a partir de um romance escrito por Zoë Heller. Na trama, Cate Blanchett (indicada ao Oscar de coadjuvante) interpreta Sheba, uma professora casada e mãe de dois filhos que acaba se apaixonando por um estudante de 15 anos. Ao descobrir o relacionamento, uma docente de História solitária e à beira da aposentadoria (Judi Dench, concorrente ao Oscar de melhor atriz) passa a manipular e a chantagear Sheba, por quem sentia atração.
Como Notas sobre um Escândalo, Segredos de um Escândalo acrescenta um terceiro elemento à equação. É a personagem vivida por Natalie Portman, vencedora do Oscar de melhor atriz por Cisne Negro (2010) e indicada por Closer: Perto Demais (2004, como coadjuvante) e Jackie (2016). Trata-se de Elizabeth Berry, uma estrela de Hollywood que visita Savannah porque vai interpretar, no cinema, o papel de Gracie — e que tem mais ou menos a mesma idade de Joe.
É pelos olhos de Elizabeth que Todd Haynes imagina como seria a vida dessa família tão heterodoxa, reconstitui o frenesi midiático em torno de Letourneau e Fualaau e especula sobre as consequências psicológicas para os personagens envolvidos. Joe, por exemplo, é nitidamente uma criança no corpo de um adulto de 30 e poucos anos. A impressão é reforçada pela ótima atuação de Charles Melton, que disse ter estudado o trabalho do saudoso Heath Ledger em O Segredo de Brokeback Mountain (2005) para expressar na fisicalidade e na voz uma dor reprimida. Instado a contar a sua história, Joe finalmente pode refletir sobre sua realidade — ou a performance que, talvez inconscientemente, talvez a contragosto, vem desempenhando desde o início da adolescência. O hobby do personagem serve como metáfora de seu processo: criar lagartas até elas se transformarem em borboletas, quando serão soltas.
Elizabeth também permite aproximar Segredos de um Escândalo de um clássico de Ingmar Bergman, Persona (1966), e do cinema de Brian De Palma. No filme do mestre sueco, uma enfermeira (Bibi Andersson) cuida de uma atriz de teatro (Liv Ullmann) que parou de falar após um surto emocional. Aos poucos, nasce entre as duas uma cumplicidade, que logo se torna duplicidade: o senso de identidade da enfermeira se sobrepõe com o de sua paciente. A propósito, a certa altura de Segredos de um Escândalo, Elizabeth, ao responder a uma pergunta sobre cenas de sexo, diz que "Às vezes, há uma química real entre duas pessoas e você começa a sentir que é real. Você começa a perder a linha: estou fingindo que estou sentindo prazer ou estou fingindo que não estou sentindo prazer?".
Em entrevistas, Todd Haynes disse que pensou em Persona ao observar, com prazeroso desconforto, a fusão e o espelhamento de Gracie e Elizabeth, que parecem reconhecer uma na outra o caráter predatório. Não à toa, o diretor de fotografia Christopher Blaveult (o mesmo de First Cow: A Primeira Vaca da América) utiliza espelhos e reflexos na composição das cenas.
O tema da duplicidade e da representação, os personagens manipuladores ou manipulados, um certo tom autoconsciente de suspense erótico e o borramento da fronteira entre o que é real e o que é simulacro também remetem a filmes dirigidos por De Palma, como Irmãs Diabólicas (1972), Dublê de Corpo (1984) e Femme Fatale (2002). Esse parentesco é realçado pela trilha sonora, na qual o compositor brasileiro radicado nos EUA Marcelo Zarvos adaptou e reorquestrou a música de Michel Legrand para O Mensageiro (1971), de Joseph Losey. O piano agudo que comenta a narrativa como se fosse um melancólico alerta ao espectador evoca algumas colaborações do italiano Pino Donaggio com o cineasta estadunidense, em especial o tema principal de Um Tiro na Noite (1981).