Por Milton do Prado*
Para quem tem o cinema como parte da vida, ver o novo filme de qualquer cineasta cuja carreira é seguida é como reencontrar um(a) amigo/a. Não exatamente a pessoa que dirigiu, mas uma certa “entidade” formada principalmente pelos filmes e, eventualmente, por entrevistas e contextos. Cada encontro é feito de expectativas e projeções e pode reforçar opiniões, trazer decepções ou surpreender positivamente. Talvez seja um efeito colateral da politique des auteurs lá dos anos 1950, que se transforma posteriormente em elemento de marketing, muito bem utilizado pelo Festival de Cannes, por sinal. O fato é que vir acompanhar uma seleção como esta aqui é ansiar por vários destes reencontros.
De um diretor como Martin Scorsese, por exemplo, espera-se sempre algo interessante, no mínimo baseado na admiração que construímos em décadas acompanhando seu cinema. No entanto, Kiillers of the Flower Moon, exibido fora de competição, mostra que o respeitável senhor de 80 anos ainda tem muita bala na agulha (sem nenhum trocadilho). Baseado no livro de David Grahan, conta a história do lento massacre dos nativos da nação Osage, na Oklahoma nos anos 1920, que tinham enriquecido depois de descobrirem petróleo na sua terra – o que vai gerar, evidentemente, a inveja dos brancos da região. O método perpetrado para matar aos poucos a população e se apropriar de forma legal – embora imoral – da riqueza dos indígenas é um dos episódios mais macabros e desconhecidos da história norte-americana, lembrando o massacre da população negra de Tulsa, citado no filme. Scorsese transforma a trama em um verdadeiro filme de gangsters transportado para o western, fazendo uma ponte entre os gêneros e construindo um dos vilões mais cruéis de sua filmografia, já cheia de gente não muito católica.
À interpretação impressionante de Leonardo DiCaprio, somam-se a de Robert De Niro e a composição luminosa de Lily Gladstone, além de um conjunto incrível de coadjuvantes que inclui Brendan Fraser (muito melhor do que em A Baleia) e John Lithgow. Dois poréns não chegam a estragar o resultado final, mas incomodam em um primeiro visionamento: a demora do filme para engrenar, preocupado em que está em apresentar com calma uma grande quantidade de personagens e contextos; e um epílogo com tom dissonante, divertido, mas que não parece ter sido a melhor maneira de encerrar esta história tão pesada.
Divertido e pesado, de forma muito bem dosada, é o novo Todd Haynes, May December. O jogo de espelhos da trama mostra uma atriz, Elizabeth Berry (vivida por Natalie Portman) que visita por algumas semanas a cidade daquela que ela irá encarnar no cinema, Gracie Atherton-Yoo (Julianne Moore), presa duas décadas antes por seduzir um menor de 13 anos. Acontece que Gracie, ao sair da prisão, casou-se com a vítima e vive até hoje com ele, que tem a mesma idade de Elizabeth. O filme recupera o tom camp dos primeiros filmes do realizador, abusando de diálogos absurdos e convincentes para explorar os meandros mais que delicados da situação, sem moralismo de um lado, nem cinismo do outro. Uma das experiências mais prazerosas do festival, o filme conta com duas atrizes no auge.
No domingo foi a vez de uma espécie de jogo de tabuleiro ouija cinematográfico. Havia muita expectativa em torno de Film annonce du film qui n'existera jamais: “Drôles de Guerres”. Esta amostra do filme que Jean-Luc Godard não chegou a terminar foi exibida em uma sala Debussy lotada e com conhecidos nomes do cinema, de Jim Jarmusch a Costa Gavras, passando por Salma Hayek e Wang Bing, todos ansiosos para ver o que seria ofertado como a obra póstuma do provocador cineasta franco-suíço morto no ano passado. Antes dela foi exibido, porém, o documentário Godard por Godard, cuja inadequação naquela sessão deixamos entender com um único comentário: um ótimo material para passar na televisão.
De certa forma, essa longa introdução composta de vários conhecidos extratos do realizador esfriou os ânimos para os 20 minutos de “Drôles de Guerres”, apresentado por Fabrice Aragno, colaborador recente de Godard. O curta (é possível chamar assim?) é composto praticamente por imagens fixas do caderno de anotações do diretor para o que seria seu próximo filme. O que o difere de uma daquelas matérias na Cahiers du Cinéma mostrando o mesmo material são três coisas: 1) dois ou três rápidos e belos planos em movimento, um em especial mostrando uma mulher correndo nas ruas; 2) a duração imposta pela imagem fixa transformada em plano, permitindo a leitura de todos os elementos da tela; 3) finalmente, a exibição na tela grande em um espaço cheio de gente no maior festival de cinema, promovendo uma ponte semântica entre a séance de cinema (em francês) e a séance espiritual (em inglês). Ao final, um misto de frustração pela incompletude, de tristeza pela ausência e de felicidade pela constatação de um método único de criação exibido. Registre-se, porém, a típica bizarrice proporcionada por esse tipo de evento: ao fim da sessão, pouquíssimas pessoas indo falar com os realizadores presentes, enquanto uma turba cercava as celebridades que só tinham ido conferir seu ídolo morto. Drôle de funérailles, teria exprimido Godard se tivesse presenciado.
Justine Triet é um nome incontornável de quem acompanha o cinema francês dos últimos anos. Revelada há 10 anos com A Batalha de Solferino, Triet tem construído uma sólida carreira através de retratos de fortes personagens femininos dentro de situações de extrema tensão. O tom semi-aloprado dos dois primeiros longas, que por sua vez tratavam de assuntos sérios, vem sendo substituído desde Sibyl (2019) por um tom mais grave, que, no entanto, permite respiros cômicos inesperados. Em L’Anatomie d’une Chute, em competição no festival, acompanhamos a escritora vivida pela ótima Sandra Hüller (de Toni Erdmann e no elenco do impressionante The Zone of Interest, também na mostra) tentar provar sua inocência na queda que levou seu marido à morte. Uma incrível sequência de abertura vai deixando lugar a um tom mais convencional. Triet já nos ofereceu mais, embora não dê para chamar o filme de decepção. Uma obra claramente em construção.
O representante brasileiro na competição pela Palma de Ouro teve suas primeiras exibições na noite do domingo. Karim Aïnouz, um dos mais importantes realizadores brasileiros das últimas décadas, também sempre mostrou um olhar atento para as mulheres, como em O Céu de Suely (2006), Abismo Prateado (2011) ou A Vida Invisível, este último vencedor da mostra Un Certain Regard de Cannes há quatro anos. Em todos eles, histórias de personagens femininos que encontram forças para superar situações de extrema violência masculina. Firebrand, seu novo filme, também faz parte desse grupo. O projeto mais internacional do realizador, com elenco estelar (Alicia Vikander, Jude Law), conta a história de Catherine Parr, última esposa do cruel rei da Inglaterra Henrique VIII que em pleno século 16 foi escritora e teve atuação importante na reforma anglicana.
Karim demonstra sua conhecida habilidade plástica em construir uma mise en scène dos corpos, que muitas vezes se enfrentam aproximando-se ou afastando-se da câmera que não os enquadram completamente. O resultado, porém, é morno para quem também conhece a força dos outros trabalhos dele, um pouco pela preocupação com a sobriedade com que constrói as imagens (a fotografia é novamente da fantástica Hélène Louvart), ou por certos exageros para louvar a personagem (“uma religião mais tolerante” ao falar do protestantismo incentivado pela rainha me parece um arroubo desnecessário), ou ainda pela reiteração do discurso que nem sempre soa autêntico (e não falo aqui somente dos letreiros que abrem e encerram o filme). Seus filmes anteriores já confrontavam o patriarcado com muito mais eficiência. Nem a ambientação sombria, em que vemos uma Idade Média de aspecto mais repugnante, esconde um certo verniz que parece impedir o filme de alçar voo.
*O cineasta, crítico, pesquisador e professor de Cinema na Unisinos está em Cannes acompanhando o festival. Leia outros textos da cobertura em gzh.rs/Cannes23