Por Milton do Prado*
As sessões do Festival de Cannes começam às 8h30min da manhã e se estendem até depois da meia-noite, para dar conta dos filmes da competição principal e várias outras sessões da seleção oficial (Um Certo Olhar, Cannes Classics, Cannes Première, exibições especiais) e das paralelas (Quinzena dos Cineastas, Semana da Crítica, ACID, sessões do mercado e da imprensa etc). Como cada filme tem sempre mais de uma exibição (em geral, três ou quatro), dá para se ter uma ideia do embarras du choix, expressão francesa para traduzir a dificuldade de se escolher quando se tem muita coisa à disposição. Obter o ingresso para cada sessão, porém, não é tarefa fácil, e as sessões mais disputadas já estão esgotadas alguns minutos depois de aberta a bilheteria online, 7h da manhã.
Pois uma destas sessões foi nesta quarta-feira (17). O novo filme de Pedro Almodóvar, Strange Way of Life, foi exibido às 15h em uma Sala Debussy lotada de gente molhada, já que a chuva que caiu em Cannes não perdoou as filas que já eram longas duas horas antes da sessão. O média-metragem de 30 minutos é a primeira investida do realizador espanhol no universo do western – um western queer, diga-se de passagem, mais caliente que o de Brokeback Mountain, de Ang Lee, ainda que mais comportado que o de Rocky e Hudson – Os Cowboys Gays, do gaúcho Otto Guerra.
Ethan Hawke é Jake, o xerife de uma pequena cidade que reencontra Silva, vivido por Pedro Pascal, depois de 25 anos e uma noite cheia de segredos. A história narrada como uma lenda – e introduzida por uma canção em português – apresenta ainda um terceiro importante personagem que vai complicar a situação. A já conhecida competência visual de Almodóvar é desta vez ressaltada pelos figurinos Saint Laurent, mas é verdade que o espanhol pisou no freio com os atores principais, jogando mais com a sugestão do que mostrando explicitamente a paixão entre os cowboys. O final, entre o poético e o frustrante, deixa um gostinho de quero mais. No bate-papo depois da sessão, o madrilenho deixou claro que tinha ideia para um filme mais longo que, provavelmente, nunca vai existir, e por isso apostou em um projeto mais simples, garantindo assim sua incursão no gênero.
Não falta complexidade no primeiro filme dentro da competição à Palma de Ouro. Monster, de Hirokazu Kore-Eda, trabalha com um quebra-cabeça narrativo em três tempos. Mudando os pontos de vista para retratar uma série de incidentes envolvendo um adolescente com um comportamento estranho, sua mãe que o cria sozinha e um professor acusado de agredi-lo. Kore-Eda trata com delicadeza uma série de temas complexos, em um filme em que nada é o que parece ser – incluindo aí o título do filme que, para quem não conhece a filmografia intimista e humanista do realizador japonês, pode gerar falsas expectativas. A intricada narrativa, que trabalha com lacunas de uma forma muito eficiente, conduz o filme quase sempre com crescente emoção até sua belíssima cena final. Como bônus, a homenagem final a Ryuchi Sakamoto, que morreu recentemente, no seu último trabalho para o cinema.
Falando em expectativas, Le Retour, de Catherine Corsini, apresentou um resultado morno tanto para quem queria mais lenha na fogueira da polêmica que cercava o filme, quanto para quem tinha saído do primeiro filme em competição esperando algo do mesmo nível. A película de Corsini mostra a viagem de uma mãe e suas duas filhas adolescentes de volta à Córsega, onde ela viveu com o pai delas. Entre o despertar de um amor por outra e uma festa regada a drogas, a jovem mais velha irá descobrir um forte segredo de família. Le Retour traz para a tela grande uma série de discussões importantes, como a diferenças de classe e o racismo, sem, no entanto, ir fundo em nenhuma delas e algumas vezes sem disfarçar o artificialismo. Do ponto de vista formal, é mais um exemplo de um certo naturalismo calculado comum no cinema francês há algumas décadas e que já apresentou melhores resultados, inclusive no trabalho anterior da realizadora, La Fracture. Resta o trio de atrizes, que consegue trazer alguma emoção mais espontânea ao filme. Quanto à cena polêmica que teria sido improvisada sem o aviso da comissão responsável, por envolver uma menor de idade, esta ficou fora da montagem final. Na entrevista coletiva, Corsini admitiu que os tempos mudaram e que precisa ter mais cuidado quando trabalhar com cenas de intimidade. Os ânimos se acalmaram.
O festival continuou nesta quinta-feira (18), então, com suas múltiplas sessões, tentando dar conta de propostas radicais como o documentário Ocupied City, de Steve McQueen, que utiliza mais de quatro horas para mapear eventos de repressão aos judeus na segunda guerra em Amsterdã. A estrutura do filme que foi exibido fora de competição é clara e com poucas variações: de um lado, vemos os locais hoje em dia, evocando situações cotidianas e outras que marcam o tempo atual que cobrem do início da pandemia de covid à guerra da Ucrânia; de outro, ouvimos a narração fria de cada acontecimento traumático envolvendo a presença nazista na cidade holandesa. Um filme exigente, mas de uma força inegável.
Radical também é o novo Wang Bing, Jeunesse (Le Printemps), exibido em competição, em que o realizador acompanhou, durante cinco anos, vários jovens que trabalham em oficinas de manufatura de roupas na China. Um filme extremamente duro, que porém mostra situações comuns entre jovens entre 16 e 30 anos: brincadeiras, planos, namoros, uma gravidez indesejada, insatisfações. A particularidade, como é comum em Bing, é o ambiente de exploração do particular capitalismo chinês. Em um ambiente de condições degradantes de trabalho, acompanhamos longas e cansativas (para os personagens e para o espectador) negociações salariais. Talvez por ter sido visto logo em seguida do filme de McQueen, Jeunesse (Le Printemps) não parece impressionar como outros filmes do diretor chinês, apesar da justeza de sua realização, em um admirável trabalho de imersão documental.
Bing tem outro filme no festival, fora de competição. Enquanto isso, ali do lado, no Grande Teatro Lumière, Harrison Ford, Phoebe Waller-Bridge e a equipe do novo Indiana Jones and the Dial of Destiny subiam o tapete vermelho para lembrar que nem só de vanguarda vive Cannes. Este, porém, vai ser assunto do nosso próximo texto.
*O cineasta, pesquisador e professor de Cinema na Unisinos está em Cannes acompanhando o festival. Leia outros textos da cobertura em gzh.rs/Cannes23