Por Milton do Prado*
O 76˚ Festival de Cinema de Cannes começou nesta terça-feira (16) já embalado em polêmicas e uma forte pressão política. O principal festival de cinema da França não está imune à vaga de protestos que desde o início do ano toma conta do país por causa da impopular reforma da aposentadoria imposta pelo governo Macron sem passar pelo Congresso (graças a um dispositivo legal raramente utilizado). Além da possibilidade de protestos in loco, com o uso de panelaços que têm se tornado comum e despertaram a fúria do presidente, os sindicatos prometem perturbar grandes eventos do país simplesmente cortando sem aviso o fornecimento de eletricidade, ameaça que deve estar deixando os ralos brancos cabelos de Tierry Frémaux, delegado-geral do festival, de pé.
E não são somente as grandes convulsões nacionais que perturbam o Festival. Uma série de outras polêmicas que trazem outros aspectos políticos para o foco do evento. O filme Le Retour, de Catherine Corsini, confirmado na para a seleção oficial somente em uma segunda chamada, coleciona uma série de denúncias que vão de assédio moral por parte da diretora em relação a parte da equipe, assédio sexual de um técnico sobre uma atriz menor e constrangimentos ligados a uma cena de masturbação da adolescente que não estava inicialmente no roteiro. A conferir o filme e ver como a realizadora escapa do assunto que será inevitável, mas a possibilidade de protestos paira no ar.
Como se não houvesse suficiente potencial para o barulho, a atriz Adèle Haenel publicou uma carta na semana passada em que anuncia a sua saída completa do mundo do cinema, após uma revolta que começou quando Roman Polanski ganhou o prêmio César de melhor diretor em 2020. Em seu anúncio, Haenel ataca um meio que seria ainda muito conivente com agressores, referindo-se nominalmente ao Festival de Cannes. Uma carta assinada de apoio assinada por 123 atrizes foi publicada ontem no jornal Libération, denunciando o tapete vermelho estendido a agressores homens e mulheres, tensionando ainda mais o ambiente do evento.
Embora Fremaux tenha se esforçado em responder à provocação, o filme escolhido para abrir o festival não o ajuda muito. Jeanne Du Barry tem Johnny Depp no papel de Luis XV, em seu primeiro trabalho depois do hipermediatizado julgamento por agressão de sua ex-mulher, Amber Heard. Para piorar, a diretora e atriz, Maïwen, sofre um processo por agressão contra um jornalista em fevereiro, ao puxá-lo com violência pelo cabelo em um restaurante e cuspido no seu rosto – em um caso ainda não completamente esclarecido, mas que aparentemente está relacionado ao trabalho daquele profissional em revelar acusações de assédio sexual de Luc Besson, ex-marido da realizadora. Mesmo que o peso dessas polêmicas possa se esvaziar nos próximos dias, é uma pena que os dois filmes que estão no centro delas sejam, justamente, dois filmes dirigidos por mulheres.
Os filmes do primeiro dia
Polêmica e política fazem parte da história de Jacques Rivette, diretor da Nouvelle Vague morto em 2016. Após da censura sofrida por A Religiosa (1966), o diretor realizou L’Amour Fou (1969), considerado um de seus filmes mais radicais, mas não distribuído desde então pois seu negativo fora destruído em um incêndio em 1973. Neste primeiro dia festival, às 14h, a primeira sessão da Cannes Classics começou justamente com a exibição do filme em cópia restaurada em 4K, ofertando ao público mais de quatro intensas horas. Centrando sua narrativa sobre o fim de relacionamento entre um diretor de teatro e uma atriz, esta história de amor louco mescla imagens em 35mm com outras, documentais, em 16mm. O filme é político no que ele tem de mais justo: trata-se da relação de poder em uma convivência onde há cada vez menos espaço para o racional. Apresentando a sessão, Bulle Ogier, atriz do filme com Jean-Pierre Kalfon, declarou que este é seu filme preferido entre todos em que trabalhou, concluindo com a afirmação: “Eu acho que Jacques Rivette, que amava os fantasmas, está hoje aqui entre a gente” – o que deixou a plateia emocionada pronta para a carga de densidade que viria em seguida. L’Amour Fou é um retrato da época, das relações que tentavam se flexibilizar, das experiências estéticas e de toda a dor envolvida quando as duas coisas se misturavam.
Em um registro completamente diferente, temos o filme da abertura oficial. Jeanne Du Barry tenta, às vezes de forma bem-sucedida, outras nem tanto, colocar pautas atuais em um típico representante do cinemão francês de qualité dos nossos dias. Se a escolha de Johnny Depp como Luís XV é uma incógnita (apelo comercial, provocação, admiração ou todas as hipóteses anteriores), é preciso dizer que o ator, com poucos diálogos em um francês correto, está à vontade no papel. É a atriz-realizadora, no entanto, a verdadeira protagonista do filme. Uma pena que não vejamos mais tempo de tela de Mevil Poupaud (como o agressivo Conde Du Barry), do comediante Pierre Richard (ótimo como o Duque de Richelieu) e do surpreendentemente pouco aproveitado Pascal Greggory (grande ator francês que já trabalhou com Eric Rohmer e Olivier Assayas, entre outros).
Além do elenco de peso, não faltam ao filme outros elementos típicos deste tipo de produção: música retumbante, imagens luxuosas (ah, o castelo de Versailles, poupado pela revolução francesa e adorado pelos republicanos) e uma ou outra estripulia visual interessante (como o uso inesperado do zoom em duas sequências) que não fazem o filme levantar vôo. Ele é superior ao o último longa da diretora, intitulado – vejam só – Meu Rei, que retrata – vejam só de novo – uma relação turbulenta de um casal. Jeanne Du Barry é mais palatável e menos desagradável, com uma narrativa fluida apesar das escolhas óbvias, como uma narração redundante que serve de muleta de tempos em tempos. Uma pena que Maiwenn não tenha ousado mais, já que seu filme Polissia (2011) prometia uma carreira melhor.
Dada a largada do festival, ficam os discursos emocionantes de Catherine Deneuve defendendo a paz na Ucrânia e Michael Douglas, homenageado, fazendo um balanço da sua carreira. Nada como valores antigos certos para ressaltar a importância daquele que é considerado por muitos o maior festival de cinema do mundo. Não sabemos ainda se ele vai dar ouvidos às vozes descontentes ou ignorar as reivindicações urgentes no futuro. Ventos de uma nova revolução podem estar vindo, mas não se sabe se à ponto de ameaçar as cabeças, ameaçando a majestade de um evento quase octogenário.
*O cineasta, pesquisador e professor de Cinema na Unisinos está em Cannes acompanhando o festival. Leia outros textos da cobertura em gzh.rs/Cannes23