Por Milton do Prado*
“Eu acredito na matemática. Ela nos permitiu conquistar o espaço e agora vai nos permitir conquistar o tempo”. Essa frase do vilão Jürgen Voller (Mads Mikkelsen) diz muito sobre Indiana Jones e a Relíquia do Destino (Indiana Jones and the Dial of Destiny), que encerra a famosa franquia. Já na ótima cena inicial, durante a Segunda Guerra, vemos um Harrison Ford rejuvenescido pela mesma tecnologia usada em O Irlandês (2019), com muito mais eficiência aqui
Não se trata, porém, apenas de uma conquista técnica. Um cartaz de Os Caçadores da Arca Perdida (1981) anunciava: “o retorno da grande aventura”. O filme que lançou o personagem era, à sua maneira, uma homenagem saudosa a um certo tipo de aventura que Hollywood não produzia. Já (…) A Relíquia do Destino, por sua vez, evoca um certo tipo de cinema que Hollywood, atualmente em crise, não tem certeza quanto tempo vai durar. Tudo no filme parece nascer, logo, desta tentativa apaixonada e desesperada de provar que, sim, ainda é possível acessar este passado – quase como a nostalgia da nostalgia.
O famoso arqueólogo vai aparecer nos anos 1970 como um professor de colegial frustrado, que sofre com o luto de ter perdido o filho (valeu, Shia LaBeouf), separou-se da mulher e espera a aposentadoria. Evidentemente, isto não daria um filme – ou pelo menos, não o tipo de filme cujo objetivo é apelar para uma máquina de nostalgia e ao mesmo tempo mostrar a retirada do personagem de cena. Apela-se, então, tanto para a chegada de uma personagem que poderia muito bem o substituir (sua afilhada, vivida por Phoebe Weller-Bridge), quanto para a volta dos nazistas como grandes vilões. O grande vilão, porém, tem planos muito ambiciosos para fazer aquilo que Hitler não tinha conseguido. Entre a trama sem pé nem cabeça e o exagero das situações facilitado pelo uso do digital, temos finalmente uma despedida honrosa para um dos personagens mais conhecidos da história do cinema.
O Brasil, finalmente
Sexta-feira (19) foi o dia de ver as primeiras exibições de longas brasileiros na Croisette, começando por Nelson Pereira dos Santos – Vida de Cinema. Dirigido por Aída Marques e Ivelise Ferreira, trata-se uma afetiva homenagem ao grande realizador falecido em 2018. O documentário reconta a vida de Nelson através de arquivos e, principalmente, de um grande número de entrevistas que ele deu em diferentes épocas da sua vida. Lembrando muitos casos conhecidos (como o famoso cancelamento de Vidas Secas e a substituição por Mandacaru Vermelho, em função da chuva que fez sumir a seca no sertão nordestino) , o filme oferece também largo material sobre as vindas do realizador ao Festival de Cannes. Entre o afeto, o registro histórico e a vertigem de ver o festival em imagens do passado, ficamos com vontade de voltar aos filmes de Nelson, em especial a Memórias do Cárcere, ovacionado na Quinzena dos Realizadores em 1985. Baseado em Graciliano Ramos, ele mostrava a prisão do escritor durante a ditadura de Vargas. Retomar estas camadas históricas é a maior qualidade do filme, um retrato do cineasta político e humanista, fundador dos cursos de cinema da UNB e da UFF.
Kleber Mendonça Filho, com seu Retratos Fantasmas, oferece um mergulho pessoal e afetivo em um material de arquivo (pessoal, de outros filmes pernambucanos, de documentos públicos) para entender alguns espaços de Recife. Na primeira parte, temos a memória do apartamento que fora de sua mãe historiadora, antes deste se tornar cenário para vários de seus filmes. A recordação do espaço leva à da cidade e da sua relação com os cinemas de rua que Kleber frequentou nos anos 1980, cultivando sua cinefilia e fazendo-a viver o centro da cidade, abandonado hoje como tantos outros em todo o país. Em uma mistura de vontade de filmar com faro de historiador que previa que aquele mundo iria mudar em breve, o diretor registrou as salas de rua durante vários anos, entrevistando funcionários, e consegue oferecer um retrato muito preciso de uma cidade que não existe mais – é ver o filme para concluir por si mesmo se isso foi para melhor ou para pior.
Na última parte, acompanhamos o destino destas salas hoje, transformadas em lojas de eletrodomésticos, em projetos grotescos de shopping que nunca vingaram e, como era de se esperar, em igrejas evangélicas. O filme relembra o uso constante que fazemos do vocabulário religioso para se referir aos cinemas, como se aqueles templos já trouxessem em sua arquitetura sua função espiritual, vendida agora pelos mercadores de salvação. O tom do filme é muitas vezes triste, mas não necessariamente de lamento, graças ao saboroso texto, falado pelo próprio diretor. Em todo caso, é muito bom que um dos sobreviventes desta história, o impressionante Cinema São Luiz, não precise entrar no filme como um fantasma, mesmo que a situação da sala esteja ameaçada. O amor do realizador por esses lugares que lhe forneceram o imaginário que vemos em todos seus filmes é tocante e de certa forma reencarna em uma cena de ficção, a única originalmente criada para o filme, em que ele próprio aparece, lembrando o tom de alguns filmes do realizador palestino Elia Suleiman.
O peso do passado
Dois filmes em competição pela Palma de Ouro também tentam encarar de frente o passado para nos lembrar da complexidade do mundo de hoje. Inspirado no livro homônimo de Martin Amis, que faleceu neste sábado (20), The Zone of Interest é um mergulho no cotidiano da família de um oficial nazista. O clima idílico (o primeiro plano do filme poderia se chamar “o despertar na relva”) da região e da nova casa onde vivem vai aos poucos dando lugar ao real lugar onde ela se fica – e que, embora a sinopse do filme faça questão de revelar, é melhor deixar quem não leu o livro, nem conhece a expressão Zona de Interesse, descobrir por si mesmo.
Alternando registros naturalistas com o já conhecido gosto do realizador por construções sensoriais artificiais (imagens fantasmagóricas, cores que tomam conta de toda a tela, um impressionante uso do som), o filme é, desde já, uma das experiências mais perturbadoras do festival. Vai ser difícil esquecer aquela família tão comum e seu projeto de felicidade que revela aos poucos a banalidade do mal.
O longa da tunisiana Kaouther Ben Hania, Les Filles D’Olfa, também em competição, é outro a mergulhar no passado, este mais recente, para tentar descortinar a história do desaparecimento de duas das quatro filhas de uma mãe. A proposta de um documentário de ficção, ou seja, da reconstrução de um fato com participação de parte das pessoas envolvidas na história e algumas atrizes, remete a alguns filmes de Mohsen Makhmalbaf. É fascinante no início, porém, à medida que o filme avança, as fragilidades aparecem, e mesmo uma dose de ingenuidade na encenação. Três grandes trunfos: a própria Olfa mostrando-se um inesperado talento ao reconstituir o fato para a atriz que faria seu papel; o ator que faz todos os papeis masculinos não conseguindo terminar uma cena de violência; e o choque da revelação do trágico destino das meninas, um caso bastante mediatizado à época.
*O cineasta, pesquisador e professor de Cinema na Unisinos está em Cannes acompanhando o festival. Leia outros textos da cobertura em gzh.rs/Cannes23