Estreia neste domingo (14) no menu da Netflix um raro filme brasileiro de suspense: Propriedade (2022).
Esse é um dos poucos gêneros em que a produção nacional ainda é tímida. Dá para citar como exemplos O Lobo Atrás da Porta (2013), de Fernando Coimbra, Para Minha Amada Morta (2015), de Aly Muritiba, O Sequestro do Voo 375 (2023), de Marcus Baldini, e Uma Família Feliz (2023), de José Eduardo Belmonte.
Propriedade é o segundo longa-metragem de Daniel Bandeira, diretor de Amigos de Risco (2007). A protagonista é vivida por Malu Galli, das novelas Amor de Mãe (2019) e Além da Ilusão (2022), aqui em uma ótima atuação, calcada no olhar e no físico. A trama começa em Recife, onde a rica estilista Teresa ainda se recupera de um episódio de violência urbana. Seu marido, Roberto (Tavinho Teixeira, de O Clube dos Canibais), propõe passar uns dias na fazenda da família, para onde vão a bordo de um carro novo, todo blindado.
Chegando lá, o casal depara com uma revolta dos empregados — que trabalham sob condições análogas à escravidão e agora correm o risco de serem despejados, já que o local deve ser transformado em um empreendimento turístico. O único refúgio é o interior do veículo, onde o vidro separa dois mundos.
Fã dos gêneros do suspense e do terror, o diretor e roteirista pernambucano Bandeira disse que deu início a Propriedade como um exercício formal sobre enclausuramento, mas acrescentou contornos político ao perceber a polarização do Brasil a partir da primeira eleição de Dilma Rousseff para a Presidência, em 2010. "É uma espécie de cautionary tale", ele afirmou em entrevistas: "Se não começarmos a se entender, a conversar, a fazer concessões para o outro, vamos chegar a uma situação de não retorno. A incomunicabilidade é o motor da nossa tragédia".
O filme também é polarizador: o espectador ficará ao lado da protagonista traumatizada e acuada, mas que individualiza uma elite que se apoia na desigualdade social, na exploração da mão de obra e na falta de empatia? Ou o público vai compactuar com as práticas violentas — que incluem tortura — de um coletivo que luta por posse da terra, pagamento justo e liberdade?
As contradições ampliam o impacto e a ressonância da história, que foi tema de uma brilhante análise do crítico Daniel Rodrigues no site Matinal. Em seu texto, Rodrigues situa Propriedade na pujante cinematografia contemporânea de Pernambuco, Estado de diretores como Cláudio Assis, Hilton Lacerda, Kleber Mendonça Filho e Renata Pinheiro, e o aproxima especialmente de O Som ao Redor (2012), de Mendonça Filho, por conta do "antagonismo entre público e privado, entre pobreza e riqueza, entre velho e novo, entre impotência e poder, entre humanidade e barbárie".
Vale reproduzir um trecho: "O que Propriedade expõe é o choque entre elite e proletariado, uma vez que o sistema vigorante favorece as desigualdades. Não apenas isso: baseia-se nelas. O capital supõe mediar um equilíbrio, mas só faz provocar revolta nos que o geram, mas não o detém, e medo nos que o detém, mas não o geram. A tensão é permanente e dos dois lados. Veja-se a frase que liga o automóvel de Roberto por meio de IA: o verso inicial da música Dê um Rolê. Cantado por Gal Costa no clássico disco Fa-Tal, de 1971, marco da resistência aos anos de chumbo no Brasil, o verso diz: 'Não se assuste, pessoa'. Mostra da obviedade sem criatividade da elite, que se apropria do discurso dissonante da esquerda para vestir seus modos ideológicos distorcidos, a música é usada por ele como se esta condissesse com seu comportamento imperialista, distorcendo a essência da obra e, por consequência, transformando-a num mero produto de consumo".