Desta vez, a sinopse da Netflix é perfeita: conta o suficiente para filiar Descanse em Paz (Descansar en Paz, 2024) a um tipo de filme que joga o espectador contra a parede, forçando-o a se colocar no lugar do protagonista, mas não revela demais da trama, mantendo em segredo a guinada e o desenvolvimento posterior desta mistura argentina de drama e suspense.
Dito isso, convém fazer um alerta: mais adiante, haverá spoilers sobre um dos 10 títulos mais buscados na plataforma de streaming nesta segunda-feira (1º).
Descanse em Paz é o sexto longa-metragem do cineasta argentino Sebastián Borensztein, 60 anos, que traz no currículo Um Conto Chinês (2011), Kóblic (2016) e A Odisseia dos Tontos (2019), todos estrelados por Ricardo Darín. Aqui, tendo Darín como um dos produtores, ele escala no papel principal Joaquín Furriel, ator premiado por O Patrão: Radiografia de um Crime (2014), de Sebastián Schindel, também disponível na Netflix (aliás, não faltam bons filmes do país vizinho na plataforma, vide Abutres, Cavalos Selvagens, Crimes de Família, Elefante Branco, Granizo, Leonera, O Suplente, Vamos Consertar o Mundo e XXY, além do clássico A História Oficial, vencedor do Oscar internacional).
O roteiro escrito por Borensztein com Marcos Osorio Vidal é baseado em um romance publicado em 2018 por Martín Baintrub. Envolvente do início ao fim (a duração inferior a duas horas contribui para tanto), a história começa em 1994. Sergio Dayán, o personagem de Furriel, está comprando uma joia para o bat mitzvah da filha mais velha, Florencia. O cartão de crédito é recusado, então ele paga em "efectivo".
Logo descobrimos que esse amoroso marido e pai de família está atolado em dívidas: os salários dos seus empregados na fábrica estão atrasados, as mensalidades escolares estão atrasadas, as prestações de um empréstimo estão atrasadas. Esse é o débito que mais o preocupa, afinal, o agiota encarnado por Gabriel Goity (o advogado crápula da série cômica Meu Querido Zelador) ameaçou Sergio de violência contra seus entes queridos — a esposa, Estela (Griselda Siciliani, de Bardo: Falsa Crônica de Algumas Verdades), Florencia e o fillho caçula, Matías.
Qual é a saída?
(Vale reforçar o aviso sobre spoilers.)
É aí que a ficção se cruza com a realidade. A solução encontrada por Sergio é forjar a própria morte, de modo que o polpudo seguro de vida garanta o futuro da família. O protagonista desparece de Buenos Aires na esteira do ataque terrorista de 18 de julho de 1994 contra o prédio da Associação Mutual Israelita Argentina, a AMIA, que matou 85 pessoas e deixou centenas de feridos.
Sergio vai recomeçar do zero no Paraguai — é o país onde, em 2001, foi encontrado Patricio Irala, a suposta 86ª vítima do atentado, em um caso de fraude para que sua esposa recebesse indenização do governo argentino. Mas Descanse em Paz não está interessado em questões criminais ou judicais. Seu foco está na angústia do protagonista, no coração vazio do morto-vivo, cada vez mais confrontado pela saudade que sente da família.
Amparado pelo elenco, pela sóbria direção de fotografia de Rodrigo Pulpeiro, pela pacienciosa montagem de Alejandro Carrillo Penovi e pela melancólica trilha de Federico Jusid (do oscarizado O Segredo de seus Olhos), Sebastián Borensztein nos põe na pele de Sergio enquanto ele tem de lidar com seus sentimentos conflitantes: o amor, o arrependimento, a busca por redenção. Mas sabemos algo que o protagonista não conhece por inteiro (novamente, cumpre repetir o alerta sobre spoilers): Estela, Florencia e Matías igualmente recomeçaram suas vidas, agora justamente com Hugo Brenner, o agiota.
Parece claro para quem devemos "torcer", mas Descanse em Paz tem a delicadeza de complicar as coisas, evitando o maniqueísmo: Hugo mostra-se ele também um marido e um pai amoroso e amado, Hugo mostra-se ele também disposto a tudo para proteger sua família.
E agora, o que Sergio deve fazer? Ressurgir, virando de ponta-cabeça aquela nova configuração familiar? Ou assistir a tudo como um voyeur, uma sombra, um fantasma?
O desfecho do filme pode frustrar espectadores que desejavam algo mais catártico ou até feliz, mas o rumo tomado por Sergio é coerente para com seu personagem. Às vezes, não há volta: somos condenados a nadar no mar que nossas lágrimas formam.