Estreia nesta segunda-feira (18) na Netflix Drive my Car (Doraibu mai Kâ, 2021), vencedor do Oscar internacional dois anos atrás, representando o Japão, e concorrente nas categorias de melhor filme, direção (Ryûsuke Hamaguchi) e roteiro adaptado (parceria do cineasta com Takamasa Ôe, a partir de contos do escritor Haruki Murakami.
Hamaguchi virou um dos nomes mais celebrados do cinema mundial em um intervalo de um ano. No dia 5 de março de 2021, ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim por Roda do Destino (2021). Em 17 de julho, ele e Ôe levaram o prêmio de roteiro no Festival de Cannes, agora por Drive my Car, também laureado pela Fipresci, a federação internacional de críticos. Em 9 de janeiro de 2022, esse mesmo título faturou o Globo de Ouro de longa em língua estrangeira. Em 7 de fevereiro, vieram as quatro indicações ao Oscar. Em 13 de março, venceu o Bafta, da Academia Britânica, e foi agraciado pela imprensa estadunidense e canadense em rádio, TV e internet com o Critics Choice. Em 27 de março, recebeu o Oscar, o segundo do Japão na competição oficial da categoria, depois de A Partida (2008), de Yojiro Takita. O país tem três estatuetas honorárias — por Rashomon (em 1952), de Akira Kurosawa; Portal do Inferno (em 1955), de Kinugasa Teinosuke; e Samurai (em 1956), de Hiroshi Inagaki.
Hoje com 45 anos, o diretor não tem pressa para contar suas histórias. Já fez um filme de quatro horas e 15 minutos (Shinmitsusa, ou Intimacies, de 2012) e outro de cinco horas e 17 minutos (Happy Hour, 2015). Drive my Car tem três horas de duração (2h59min, para ser exato), mas é tão imersivo que poderíamos passar mais tempo junto aos personagens, ouvindo seus longos diálogos sobre paixões, segredos e arrependimentos. Aliás, é tão intimista que realmente nos sentimos muito próximos dos personagens. Eis um filme que fica — na cabeça e no coração, ambos tentando acomodar reflexões e emoções despertadas pela história que trata de temas eternos e universais: o amor, o sexo, a morte, o luto, a inveja, a culpa, o próprio papel da arte.
O protagonista é Yûsuke Kafuku (interpretado por Hidetoshi Nishijima), um ator e diretor de teatro casado com uma roteirista, Oto (Reika Kirishima). Na cena de abertura, os dois transam, e depois do orgasmo o casal põe em prática um ritual: Oto narra tramas que são memorizadas por Yûsuke; pela manhã, ele repete a trama para que ela possa trabalhar em seus roteiros. O sexo como força criativa, o sexo como comunhão.
A vida do ator e diretor será abalada por uma série de episódios, todos relacionados a perdas e a traumas (deixo para o espectador descobri-los, embora muitas críticas e até a sinopse avancem em revelações). Não por acaso, os cenários principais são Hiroshima, cidade arrasada pela bomba atômica em 6 de agosto de 1945, e a ilha de Hokkaido, que convive com vulcões ativos e terremotos.
Yûsuke não sabe lidar com sua bagagem emocional. Seu diagnóstico de glaucoma, por exemplo, parece uma manifestação psicossomática decorrente de algo que ele não deveria ou não gostaria de ter visto.
Dois anos depois dos acontecimentos do prólogo, Yûsuke viaja a Hiroshima para dirigir uma montagem multilíngue da peça Tio Vânia (1897), do russo Anton Tchékhov. Por causa das regras do festival de teatro, lá o protagonista não poderá pilotar seu amado e bem cuidado carro, um Saab vermelho com 15 anos de uso e no qual escuta fitas cassete com falas dos espetáculos.
Há um constante diálogo intertextual com Tio Vânia (Yûsuke rejeita interpretar o personagem principal, por enxergar nele um espelho de sua infelicidade), mas não só isso: em Drive my Car, o palco é o lugar onde podemos nos realizar, onde vêm à tona, por meio da arte, aquilo que reprimimos na vida cotidiana, onde são vencidas as barreiras — inclusive as linguísticas — e finalmente nos dispomos à conexão uns com os outros.
O carro também é um palco em que Yûsuke contracena com Misaki (Tôko Miura), a motorista contratada pelo festival. A dor e a culpa são denominadores comuns: ambos têm dificuldade de olhar pelo retrovisor.
Nas ruas e nas estradas de Hiroshima e de Hokkaido, dois lugares marcados pela morte e pela destruição, mas também pela resiliência e pela reconstrução, Yûsuke e Misaki vão, pouco a pouco, revelando os buracos de suas almas e encurtando a distância. No caminho, surgem as curvas dramáticas desenhadas por Ryûsuke Hamaguchi — como a que envolve o jovem ator Takatsuki (Masaki Okada) —, sinuosas, mas nunca bruscas, e sempre em direção a algum tipo de cura.
Yûsuke senta-se no banco traseiro, afetivamente afastado e inerte — dirija meu carro, guie minha vida, parece sugerir (apesar de apontar os destinos). Muito cedo Misaki teve de assumir a solitária e silenciosa condução de sua trajetória — a cena em que descreve como aprendeu a ser uma boa motorista é ao mesmo tempo terna e devastadora, triste e bela.