O trinômio sexo, drogas & rock'n'roll vira sexo, política & cinema em Os Sonhadores (The Dreamers, 2003), filme de Bernardo Bertolucci (1941-2018) resgatado recentemente do limbo digital pela plataforma de streaming MUBI. Foi o penúltimo longa-metragem do cineasta italiano vencedor dos Oscar de melhor direção e roteiro adaptado (com Mark Peploe) por O Último Imperador (1987) e realizador de obras como O Conformista (1970), O Último Tango em Paris (1972) e Beleza Roubada (1996).
A Paris conflagrada pelos eventos da primavera de 1968 é o pano de fundo para que Bertolucci retome temas caros: a juventude como motor à explosão confrontando o mundo; o sexo libertando carne e espírito; a história invadindo a vida privada; o desprezo pela moral burguesa. No filme, o diretor também revive a paixão pelo próprio cinema, evocando não só os seus tempos de Matthew e os irmãos Isabelle e Theo, os personagens centrais de Os Sonhadores, (encarnados respectivamente por Michael Pitt, Eva Green e Louis Garrel), mas também celebrando o ato de filmar.
No contexto político, Os Sonhadores remete a um de seus primeiros trabalhos, Antes da Revolução (1964), que refletia sobre o clima insurgente do início dos anos 1960 ("Quem não respirou o ar que existe antes de uma revolução não sabe o que é viver", diz uma de suas frases famosas). Como escreveu o crítico Luiz Zanin Oricchio, Antes da Revolução determinou o caminho que seria seguido pelo melhor Bertolucci: aquele atento a um estilo bastante contido, porém envolvente, de filmar a relação com o outro que se ama ou odeia, e a relação com a sociedade onde se vive.
Nos extras do DVD de Os Sonhadores, Bertolucci diz que "filmamos hoje sonhando com os anos 1960". Mas, como que se contradizendo, o mesmo Bertolucci à certa altura afirma: "De certa forma, ainda bem que aquele sonho não se realizou". Ele acrescenta que se separou de amigos por conta da aproximação deles com as ideias de Mao Tsé-Tung (1893-1976) e a Revolução Cultural na China. Esse rompimento aparece em Os Sonhadores, antecipado por um diálogo antológico entre Matthew e Theo.
— Você é um grande fã de cinema, certo? — pergunta Matthew.
— Sim.
— Então por que você não pensa em Mao como um grande diretor fazendo um filme com um elenco de milhões? Todos aqueles milhões de Guardas Vermelhas marchando juntos para o futuro com o livrinho vermelho nas mãos. Livros, não armas. Cultura, não violência. Você não consegue ver que grande épico isso daria?
Theo retruca:
— Não são livros, mas um livro. E neste seu épico, todo mundo é figurante.
Por coincidência ou não, naquele mesmo ano de 2003 foi lançado outro filme com uma revisão crítica do ideário transgressivo da década de 1960. Em Edukators, o austríaco radicado na Alemanha Hans Weingartner cria um interessante confronto entre um personagem panfletário e um empresário que ele sequestra. Este empresário, Hardenberg, é justamente um ex-radical da geração de 1968. Mas, mais do que discutir política, Edukators retrata justamente a despolitização da juventude que viu as camisetas de Che Guevara deixarem de ser revolução para ser moda. O trio de protagonistas não apenas está desarticulado do restante dos cidadãos com quem se identificam como "vítimas", como também suas ações não miram um todo. E, no fim, ainda que não percebam, eles terminam subjugados pelo mesmo individualismo que condenam.
A Nouvelle Vague
Em Os Sonhadores, o primeiro elo a ligar os três protagonistas é a cinefilia. Matthew, Theo e Isabelle estão entre as 3 mil pessoas que foram protestar contra a demissão do diretor da cinemateca francesa, Henri Langlois, no Palácio Chaillot, em 14 de fevereiro de 1968. Tamanha mobilização encontra justificativa num comentário de Gilbert Adair, autor do romance em que se baseia o filme: "O cinema era o esporte em 1968".
Especialmente o cinema francês. Bertolucci conta que, quando iniciou a carreira, no começo dos anos 1960, deu entrevista em francês apesar de estar em Roma. Perguntado por que, respondeu: "É a língua do cinema".
Bertolucci se refere à Nouvelle Vague, movimento nascido no final dos anos 1950 e capitaneado por jovens realizadores como François Truffaut, Jean-Luc Godard e Alain Resnais. Egressos das revistas de crítica, eles revolucionaram o cinema ao colocar as câmeras nas ruas, filmando em locações autênticas histórias urbanas que questionavam tanto a moral, a política e a cultura burguesas quanto a própria linguagem.
Entretanto, o primeiro filme que Matthew, Isabelle e Theo veem é dos Estados Unidos: Paixões que Alucinam (1963), de Samuel Fuller. Uma das brincadeiras do trio é alguém citar uma passagem ou interpretar uma cena de alguma produção, desafiando os outros dois a adivinhar o nome do filme. No início, Matthew é o excluído do jogo, o inocente, o "americano puritano" em contato com os "liberais europeus". Até que num momento eles passam a considerá-lo "One of us, one of us", citando um clássico maldito de Tod Browning, o diretor de Drácula (1931), intitulado Monstros (Freaks, 1932).
O jogo — que Bertolucci ilustra mostrando cenas das obras originais —vai do desafio sobre quem era mais engraçado, o Buster Keaton de O Homem das Novidades (1928) ou o Charles Chaplin de Luzes da Cidade (1931), até as homenagensa divas do cinema como Marlene Dietrich (em O Anjo Azul e A Vênus Loira) e Greta Garbo (em Rainha Cristina). Referência central na agitação cultural do Maio de 1968, Godard é lembrado por vários filmes: Acossado (1960), O Demônio das Onze Horas (1965), A Chinesa (1967) e Bando à Parte (1964), inclusive com os personagens de Bertolucci recriando a corrida pelos salões do Louvre originalmente protagonizada por Claude Brasseur, Anna Karina e Sami Frey. "Na cena do Louvre", diz Bertolucci nos extras do DVD, "cito o diretor obcecado por citações: Godard faz citações o tempo todo".
É significativo que, à medida em que Matthew começa a se dar conta do grau de alienação dos irmãos, diminuem as brincadeiras com os filmes. Ou seja, é hora de amadurecer. "Vocês não vão crescer nunca", diz ele. Em outro momento, cobra uma postura: "Se você realmente acredita no que diz, deveria estar lá fora".
Um novo tango em Paris
A aproximação entre Os Sonhadores e O Último Tango em Paris não se dá apenas por serem ambientados na mesma cidade. Mas também porque falam de amores terminais, da linha tênue entre a angústia e o prazer, de sexo. Este último é encenado sem pudores e sem limites — se em Os Sonhadores Bernardo Bertolucci sugere incesto, em O Último Tango em Paris os bastidores de uma cena revelaram uma história de abuso sexual e humilhação do diretor e do protagonista para com uma jovem atriz (clique aqui para ler).
Os dois filmes são complementares. Bertolucci tinha 32 anos quando fez O Último Tango em Paris e 63 quando fez Os Sonhadores. No primeiro filme, ele mergulha com seus personagens numa viagem sem destino certo; no outro, ele os observa de longe, quase como um pai.
Em O Último Tango em Paris, Marlon Brando vive Paul, um viúvo em crise após o suicídio da mulher, e Maria Schneider é Jeanne, uma jovem francesa prestes a se casar com um estudante de cinema, interpretado por Jean Pierre Leaud, ator fetiche de Truffaut, aqui como uma caricatura dos diretores da Nouvelle Vague.
Em Os Sonhadores, repete-se um triângulo amoroso, e o cinema volta a ser personagem, tema e ferramenta narrativa. Mas se em Os Sonhadores o cinema é a fantasia, em O Último Tango em Paris era uma tentativa de captar a realidade. Se em Os Sonhadores é o estopim das brincadeiras infantis de Matthew, Theo e Isabelle, em O Último Tango em Paris é o personagem do cineasta quem diz: "Temos de ser adultos".
Elementos do roteiro, da cenografia e da direção de fotografia são semelhantes. Um apartamento vazio que é um personagem por si só, duas ou três pessoas que criam suas próprias leis nesse território, uma câmera que se move como se fosse viva... Até o elevador é parecido.
Os dois filmes começam com um estrangeiro nas ruas de Paris — mas, enquanto para Matthew tudo é sonho, para Paul tudo é tormento. Um crítico já disse que, extrapolando um pouco, podemos considerar Paul e Matthew o mesmo personagem: para Matthew, a revolução deve acontecer dentro de cada um. Paul fracassou na sua revolução pessoal e se fecha entre quatro paredes para continuar a experiência interrompida daquele outro apartamento de sua juventude.
O apartamento nos dois filmes é um universo de alienação. Em O Último Tango em Paris, Paul diz a Jeanne: "Sem nomes. Você e eu vamos nos encontrar aqui sem saber nada do que acontece lá fora". O apartamento de Os Sonhadores é um "paraíso" onde os jovens se refugiam da realidade, da guerrilha que explode lá fora.
ALERTA DE SPOILERS.
Quando Isabelle planeja o suicídio lembrando da cena de Mouchette, a Virgem Possuída (1967), de Robert Bresson, a realidade invade o sonho cinematográfico; a rua, mais precisamente uma pedra ou uma garrafa, invade a sala. A tela de cinema, à qual antes Matthew se referiu como o que os separava do mundo, estava agora rasgada. Não havia mais como sonhar: era preciso viver.