A expressão "sonhei contigo" perde o caráter íntimo e ganha contornos sinistros no filme O Homem dos Sonhos (Dream Scenario, 2023): todo mundo está sonhando com o personagem interpretado por Nicolas Cage, e não raro a fantasia envolve situações de perigo ou terror, às quais o sujeito reage com indiferença — enquanto a plateia pode manifestar apreensão: nem sempre dá para distinguir o que é real do que é onírico.
O irônico é que esse cara não é um Adônis, nem uma estrela do rock ou um herói do futebol, conforme Cage exemplificou em entrevistas. É um calvo professor universitário, chamado Paul Matthews, que leva uma vida absolutamente comum com a esposa (Julianne Nicholson, vencedora do Emmy de atriz coadjuvante pela minissérie Mare of Easttown) e as duas filhas adolescentes. A presença no imaginário coletivo rende fama ao protagonista, que deseja aproveitá-la para finalmente escrever e publicar um livro sobre formigas. Mas o que lhe oferecem é estrelar uma campanha publicitária do refrigerante Sprite e referenciar o Freddy Krueger da franquia de terror A Hora do Pesadelo.
Em cartaz nos cinemas a partir desta quinta-feira (28), este é o primeiro longa-metragem rodado nos Estados Unidos pelo diretor e roteirista norueguês Kristoffer Borgli, 39 anos, autor do igualmente interessantíssimo Doente de Mim Mesma (Sick of Myself, 2022, disponível na plataforma MUBI). Foi bancado pela A24, produtora e distribuidora independente que já venceu duas vezes o Oscar de melhor filme — por Moonlight (2016) e Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo (2022) — e é cultuada por seus títulos de terror, que incluem A Bruxa (2016) e O Farol (2019), de Robert Eggers, Hereditário (2018), Midsommar (2019) e Beau Tem Medo (2023), de Ari Aster.
O Homem dos Sonhos tem um pouco de Doente de Mim Mesma, um pouco de Beau tem Medo (a propósito, Aster é um dos produtores), um pouco dos filmes escritos por Charlie Kaufman, ganhador do Oscar de melhor roteiro original por Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004) e indicado por Quero Ser John Malkovich (1999) e Adaptação (2002).
Como Doente de Mim Mesma, tem um protagonista egocêntrico e sedento de atenção — ainda que disfarçado de modesto —, cuja trajetória permite a Borgli criar cenas que embaralham o real e o imaginado e abordar os fenômenos midiáticos, a fabricação da fama, o narcisismo patológico e a cultura do cancelamento.
Como Beau Tem Medo, acompanha a crise de um homem de meia-idade, que começa a passar por momentos bizarros — ora aterrorizantes, ora cômicos.
Como os filmes de Charlie Kaufman, investe no surrealismo, passeia pelos labirintos do inconsciente, reflete sobre como o conceito de identidade é instável e sobre como agimos feito personagens.
E pode-se enxergar um lance metalinguístico na escalação de Nicolas Cage — aliás, o duplo protagonista de Adaptação. O ator já foi "o homem dos sonhos" de Hollywood, nos tempos do Oscar por Despedida em Las Vegas (1995) e do sucesso no cinema de ação, com a trinca A Rocha (1996), ConAir: A Rota da Fuga (1997) e A Outra Face (1997). Tal qual o professor universitário do filme de Kristoffer Borgli, virou meme, no seu caso por causa da histrionice em vários papéis — mas aqui ele aparece desglamorizado e contido, a exemplo de alguns de seus melhores trabalhos, como o já citado Adaptação e Pig: A Vingança (2021).
O próprio Cage, que considera a atuação em O Homem dos Sonhos o ponto alto de sua carreira, disse reconhecer muito de si mesmo em Paul Matthews:
— Senti que tinha experiência de vida para interpretar esse personagem, em termos de ser alguém que está sob os olhos do público e que teve uma ascensão e queda, com as pessoas achando que sabem muitas coisas sobre mim. O papel foi uma grande oportunidade para trabalhar memórias, experiências e sentimentos.