Março foi generoso com os assinantes do Telecine, canal disponível no Amazon Prime Video e do Globoplay.
Pelo menos cinco grandes filmes estrearam na plataforma.
A lista inclui um clássico da Hollywood dos anos 1930 e um filme japonês que, para mim, foi o melhor dos lançados em 2023.
1) Scarface: A Vergonha de uma Nação (1932)
De Howard Hawks. A Depressão de 1929 jogou a economia e a sociedade dos EUA em um ambiente trevoso, cujas sombras encobriram também o cinema feito em Hollywood. A partir de meados da década de 1930, um gênero de produção policialesca tornou-se a expressão do cinismo de um país que se descobria vulnerável: o filme de gângster. Um dos primeiros títulos foi baseado na vida de um célebre fora-da-lei. O ator Paul Muni encarna soberbamente um anti-herói inspirado em Al Capone — dizem que ele próprio teria gostado da atuação. A dupla Howard Hawks (diretor) e Howard Hughes (produtor) narra a ascensão e a queda do bruto Tony Camonte, o Scarface, no submundo do crime de Chicago. O braço-direito do chefão é interpretado por George Raft. Brian De Palma refilmaria esse clássico em 1983, com Al Pacino no papel de um traficante cubano.
2) Os Doze Macacos (1995)
De Terry Gilliam. Foi um dos filmes lembrados na eclosão da pandemia de coronavírus. Bruce Willis interpreta o personagem James Cole, um condenado do ano de 2035 que volta no tempo para descobrir a causa de um vírus que acabou com quase toda a população do planeta. Os poucos sobreviventes moram em abrigos subterrâneos. Indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante, Brad Pitt encarna um homem neurótico que pode estar por trás da crise global.
3) Quero Ser John Malkovich (1999)
De Spike Jonze. Indicado aos Oscar de direção, atriz coadjuvante (Catherine Keener) e roteiro original, foi o filme que revelou o talento do roteirista (e depois diretor) Charlie Kaufman, premiado com a estatueta dourada de script por Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (2004). Também foi o primeiro longa-metragem dirigido por Jonze, oscarizado pelo roteiro de Ela (2013). Trata-se da absurda história de um titereiro (papel de John Cusack) que descobre no escritório onde trabalha um portal que dá acesso ao cérebro do ator John Malkovich (vivido por ele próprio). "Ao propor o literal mergulho dentro da cabeça de outra pessoa", escreveu em ZH o jornalista Roger Lerina à época da estreia nos cinemas, "o filme levanta dezenas de questionamentos existenciais, que se entrechocam com piadas e situações bizarras, numa alternância curiosa entre introspecção e besteirol. O que é a individualidade? Onde termina o eu e começa a máscara? Por que o desejo nunca pode ser saciado?".
4) Ray (2004)
De Taylor Hackford. Como escreveu o jornalista Marcelo Perrone quando a cinebiografia musical estreou nos cinemas, Ray segue uma regra que parece óbvia, mas nem sempre é cumprida pelos títulos do gênero: dá o mesmo peso à vida e à obra do personagem. Em exuberante show solo, Jamie Foxx ganhou o Oscar de melhor ator — o filme concorreu em outras cinco categorias, incluindo a principal e a de direção, e faturou também o prêmio de mixagem de som. Pianista de verdade, Foxx se preparou para o papel com o próprio Ray Charles (1930-2004). O músico deu aval para mostrar seus altos e baixos: o gênio que revolucionou a música ao fundir gospel, country, blues e jazz e o esperto empresário convivem com o marido infiel e o viciado em heroína que quase abreviou uma milionária carreira. Flashbacks relembram a infância pobre de Ray, marcada pela morte trágica do irmão caçula, a cegueira aos seis anos, e as lições da mãe para superar barreiras impossíveis para um negro cego no Sul racista dos EUA. Em paralelo à imagem, correm clássicos como I Got A Woman, Georgia On My Mind, Hit The Road, Jack e What'd I Say, cuja improvisada criação é evocada de forma arrebatadora.
5) Monster (2023)
De Hirokazu Kore-eda. Ganhador do prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes, o filme remete a um clássico do cinema japonês, Rashomon (1950), de Akira Kurosawa. Na primeira parte, vemos pela perspectiva de uma mãe jovem e viúva (Sakura Ando) a mudança no comportamento do filho de 10 anos, Minato (Soya Kurokawa). Quando ele exibe sinais de violência (sua orelha chega a sangrar), ela resolve ir à escola para confrontar o professor Hori (Eita Nagayama), que seria o responsável, quem sabe o "monstro" do título. São por seus olhos que a história é contada na segunda parte. Por fim, acompanhamos os fatos junto a Minato e um colega de aula, Yori (Hinata Hiiragi).
Essa estrutura oferece um quebra-cabeças a ser montado pelo espectador — que não necessariamente vai enxergar o quadro por completo. Como Monster aponta, cada pessoa vive uma história do seu jeito, cada um de nós tem seu ponto de vista, e o somatório nem sempre preenche todas as lacunas. Podemos, também, interpretar mal ou ignorar algo crucial devido a valores, preconceitos, normas de conduta. No comando de um elenco encantador, Kore-eda faz transparecer sua delicadeza e sua compaixão ao mesmo tempo em que retrata a monstruosidade da intolerância com o diferente, do bullying escolar, dos julgamentos precipitados e do corporativismo das instituições coletivas ("A maioria tende a se proteger, à custa de muitas outras coisas", declarou em entrevista). Também estão em foco as mentiras com as quais os adultos sufocam suas dores e o mundo de imaginação em que as crianças se refugiam.