Sabem aquele filme que é ruim, mas é bom? Com Uma Família Feliz (2023), estrelado por Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini, acontece o contrário. Dirigido por José Eduardo Belmonte, dos premiados A Concepção (2005) e Se Nada Mais Der Certo (2008), o título estreia nos cinemas nesta quinta-feira (4), quase oito meses após competir no 51º Festival de Gramado, de onde saiu sem Kikitos.
Uma Família Feliz é bom, mas é ruim porque, por um lado, merece aplauso a tentativa de fazer um filme de suspense urbano, gênero em que a produção brasileira ainda é bastante carente. Podemos citar poucos exemplos, como O Lobo Atrás da Porta (2013) e Para Minha Amada Morta (2016). Além disso, o longa do prolífico Belmonte (lançou cinco títulos nos últimos três anos, entre eles, O Pastor e o Guerrilheiro) conta com uma boa atuação de Grazi, praticamente estreante em cinema, mas que acaba sabotada por um roteiro que, com o perdão do clichê, tem mais furos do que um queijo suíço.
Convém avisar, portanto, que este texto terá spoilers.
Rodada em Curitiba, a trama foi escrita pelo carioca Raphael Montes, autor, em parceria com a criminóloga Ilana Casoy, do romance policial Bom Dia, Verônica (2016), que deu origem ao seriado homônimo da Netflix. A dupla também escreveu o díptico A Menina que Matou os Pais/O Menino que Matou meus Pais (2021), sobre o caso Suzane von Richthofen. Em Uma Família Feliz, Montes também trabalhou como assistente de direção.
Como é típico no gênero, Uma Família Feliz começa com uma cena de alta tensão, adornada por uma trilha sonora ora bombástica, ora nervosa, mas sempre alta, a ponto de obstruir alguns diálogos ao longo do filme. A personagem de Grazi Massafera surge enterrando o que parece ser uma menina. Depois, ela entra na casa, pega outra guria — que pergunta: "O que você fez com a minha irmã?" —, entra num carro e dispara em alta velocidade pela estrada. Antes da colisão frontal com um caminhão, a tela fica preta e a narrativa recua no tempo.
Daí, descobrimos que Grazi e Gianecchini interpretam Eva e Vicente, casal que mora em um condomínio de casas de classe alta com as gêmeas Ângela (Juliana Bim) e Sara (Luiza Antunes), que estão fazendo 10 anos e são filhas do primeiro casamento dele. Ela está prestes a dar à luz ao bebê Lucas. Formam a tal família feliz do título, apesar de haver uma preocupação constante: Sara precisa tomar um remédio diariamente por causa de uma doença grave. E apesar do mórbido trabalho da mãe, o de produzir bonecas que recriam crianças mortas — um ofício que é mal explorado pelo script e por fim acaba abandonado. (Talvez isso seja melhor trabalhado na versão em livro, que acaba de ser lançada por Raphael Montes, em edição da Companhia das Letras.)
De repente, machucados aparecem nos corpos das meninas e de Lucas, e Eva passa a ser a principal suspeita. O cancelamento é imediato e, num lance um tanto forçado, dada a hipocrisia que costuma reger o convívio social, seu carro amanhece todo pichado no condomínio.
Será que Eva está com depressão pós-parto e agride as crianças sem lembrar depois? É uma hipótese que logo é descartada pelo filme, reduzindo a margem de suspense e ambiguidade que poderiam fazer bem à história. Resta, então, acreditar no sobrenatural — embora não haja nenhum indício - ou que Vicente, às escondidas, possa não ser o paizão que parece ser.
E, de fato, ele faz algumas coisas condenáveis, como permitir que Ângela tome um golinho de cerveja. Mas o difícil de engolir é a irresponsabilidade inverossímil que vai ser praticada pelos dois pais.
Depois que Vicente expulsa Eva de casa — "detalhe": Lucas ainda está mamando no seio; provavelmente, a julgar pelo filme, a última mamada foi suficiente para mantê-lo alimentado por uns bons dias —, ela resolve investigar o marido. Primeiro, dá um jeito de instalar câmeras de segurança na casa. Depois, vai escarafunchar as célebres "circunstâncias misteriosas" da morte da primeira esposa, que se afogou no mar quatro anos atrás. Por fim, arma um plano para espionar o notebook dele.
Esse plano consiste em convidá-lo para sair e aplicar um "Boa noite, Cinderela".
Convidá-lo para sair.
Isso mesmo: Vicente, que tem sido pai solteiro de duas meninas de 10 anos e um bebê de colo, sai de casa numa boa enquanto os três estão dormindo. Tem babá? Não tem. Ele chamou uma vizinha? Não chamou. E se o Lucas quiser mamar? Ah, é, ele já mamou o suficiente antes de a Eva ser expulsa de casa.
E a Eva, em tese uma mãe zelosa — lembrem-se: já se descartou a hipótese de ser ela a agressora —, é quem faz o pai das crianças deixá-las sozinhas em casa. Ela está ciente do abandono, mas, mesmo assim, os dois vão jantar fora. E não é num drive-thru do McDonald's, para pegar um lanche e ir correndo ver como estão os filhos: é num restaurante chique, onde certamente a comida demorou tanto que a essa altura o Lucas já estaria morto de desnutrição — isso, claro, se ele não tivesse mamado o suficiente antes de o Vicente ter enxotado a Eva.
Bem, depois do jantar, os dois voltam para a casa no condomínio. Você acha que a mãe zelosa foi ver os filhos? Não. Antes de mais nada, acessou o notebook, percebeu que Vicente só assistia à pornografia "do bem", sem nada de pedofilia, e dormiu.
Só acordou com o choro de Lucas, mas não porque ele quisesse mamar — lembrem-se: o nenê está com o tanque cheio —, e sim porque alguém o tirou para fora do berço.
Como sei que já gastei linhas demais com um filme que não merece o seu tempo, caros leitores, vou chegar logo à solução do caso (eu alertei que haveria spoilers).
Sabem de quem é a culpa?
Da Ângela.
E pelo menos dois colegas de imprensa meus foram muito mais espertos e sacaram isso já no começo da exibição de Uma Família Feliz em Gramado. Quando, no aniversário de 10 anos, Sara ganha uma boneca e Ângela, o celular que havia pedido, Danilo Fantinel, atual presidente da Associação de Críticos de Cinema do RS (ACCIRS), pensou: "Pronto, é filme de criança má".
Ângela é tão má, que inventou a história das violências físicas para tirar Eva de casa e ficar com Vicente só para ela. Ângela é tão má, que, de madrugada, se levantava para esvaziar as cápsulas do medicamento que Sara tinha de tomar. Ângela é tão má, que no final do filme mata a própria irmã — e já não duvido que tenha sido Ângela quem empurrou a mãe do barco, com toda a força de seus seis anos de idade.
É Sara, portanto, quem Eva estava enterrando no jardim de uma casa. Mas por que diabos a menina não mereceu um velório e um enterro dignos? Não consigo encontrar justificativa para a ocultação de cadáver. Também não consigo entender por que, tendo os vídeos das câmeras de segurança que documentam as ações perversas de Ângela, Eva não chamou a polícia ou no mínimo Vicente. Vai ver, a personagem de Grazi percebeu que não estava lidando com um ser humano, mas com uma entidade sobrenatural. Para acabar com ela, só matando. E como Eva resolve liquidar com essa Annabelle de carne e osso? Usando, por exemplo, a pá com a qual enterrara Sara? Não. Como vimos na abertura do filme, o negócio é dirigir suicidamente — ou seja: pobre Lucas! Continuará sem leite materno, já que a mãe simplesmente esqueceu que ele existe.
O pior — sim, ainda pode piorar, gente — é que o plano de Eva não dá certo. Quer dizer, dá certo pela metade: ela morre, mas, como revelam cenas no meio dos créditos, Ângela sobreviveu para ficar com seu paizinho e o maninho (um verdadeiro highlander de fraldas!).
A cereja do bolo (a essa altura, já nem dou bola para o uso de clichês) é a bandeira do Brasil pendurada no parapeito. Suponho que seja uma associação com o bolsonarismo, para dar um "verniz político" a este que foi um dos piores filmes de suspense que já vi.