O 51º Festival de Gramado consagrou o cinema que se dedica a se comunicar com o público. Dramatização — mas com muita comédia — da vida de um dos maiores artistas populares do Brasil, Mussum: O Filmis, do diretor Silvio Guindane, conquistou seis Kikitos na cerimônia realizada na noite deste sábado (20) no Palácio dos Festivais: melhor filme entre os longas nacionais, ator (Ailton Graça), ator coadjuvante (Yuri Marçal), atriz coadjuvante (Neusa Borges), trilha musical (Max de Castro) e júri popular.
Ao receber este último prêmio, Guindane, estreante na direção de longas, disse:
— A gente sempre falou que queria fazer este filme para o público. A mínima generosidade de qualquer artista é conseguir fazer o povo se pensar, se divertir. Mas não adianta fazer um filme para o público se não temos as salas de cinema. Precisamos que o Senado vote o Projeto de Lei nº 3696, precisamos da cota de tela (política que determina um mínimo de tempo para a exibição de obras brasileiras, com dias e horários fixados pelo governo).´
A partir de 2 de novembro, o Brasil poderá assistir ao filme que, em Gramado, provocou "risis e lágrimis", como diria o humorista Antônio Carlos Bernardes Gomes (1941-1994), o Mussum, que fez sucesso na música (com o grupo Os Originais do Samba), na TV e no cinema (primeiro na Escolinha do Professor Raimundo, depois com Os Trapalhões). Ele já havia sido biografado no documentário Mussum, um Filme do Cacildis (2018), de Susanna Lira. Baseado em livro de Juliano Barreto, Mussum: O Filmis foi escrito por Paulo Cursino, autor da comédia Tudo Bem no Natal que Vem (2021). No palco do Palácio dos Festivais, o roteirista se emocionou ao lembrar de uma visita que fizera à cidade serrana quando sua filha tinha seis anos:
— Ela viu a estátua do Kikito e me perguntou se um dia eu iria ganhar um. Respondi: "Filha, eu faço comédia. Comédias não ganham prêmios". Ela me disse: "Eu acredito em ti, pai".
Pois bem: no Festival de Gramado, uma outra comédia — ainda que dramática — de forte apelo junto ao público (foi aplaudida em cena aberta três vezes) também levou para casa um monte de Kikitos (a propósito, três dos seis concorrentes saíram de mão abanando: O Barulho da Noite, surpreendentemente, Angela e Uma Família Feliz, como esperado). Ainda sem data de estreia, Tia Virgínia venceu nas categorias de roteiro (assinado pelo diretor Fábio Meira), atriz (Vera Holtz), direção de arte (Ana Mara Abreu), desenho de som (Ruben Valdés) e prêmio da crítica. O filme dá raro protagonismo a idosos (os atores têm entre 68 e 87 anos) e retrata uma situação comum a muitos lares brasileiros: a da irmã que não se casou, nunca teve filhos e agora se vê na condição de mãe da própria mãe.
O prêmio de Vera Holtz foi anunciado junto com o de Ailton Graça, e os dois subiram juntos ao palco.
— Vera, vem falar primeiro que eu não consigo — disse Ailton.
A atriz, então, elogiou seu colega ("alegre, colaborativo, sempre ao lado da equipe"), agradeceu a suas irmãs na ficção (as atrizes Arlete Salles e Louise Cardoso) e às irmãs da vida real e pediu que a plateia declamasse com ela um poema de Mario Quintana, Noturno Arrabaleiro: "Os grilos...os grilos... / Meus Deus, se a gente / Pudesse / Puxar / Por uma / Perna / Um só / Grilo, / Se desfiariam todas as estrelas!".
Ailton, depois de entoar um canto para Exu, pediu desculpas:
_ Prometo não me estender, mas é a primeira vez que estou em Gramado e a primeira vez que ganho prêmio em cinema.
Os apresentadores da cerimônia, Renata Boldrin, Roger Lerina e Marla Martins, haviam alertado desde o início para os premiados não se estenderem nos discursos de agradecimento, mas houve quem ultrapassou em muito o tempo, como a equipe do documentário Sobreviventes do Pampa, de Rogério Rodrigues, vencedor do júri popular na mostra de longas gaúchos, e o cineasta Zeca Brito, diretor do grande campeão da mesma competição, Hamlet (leia mais logo abaixo).
O ator que interpreta Mussum na fase adulta (Yuri Marçal vive o personagem na fase jovem) lembrou de sua infância em um barraco, onde ficava ouvindo a TV do vizinho e imaginando que "todo mundo dentro daquela caixinha era preto, porque era assim que todo mundo no meu bairro era". Ailton falou sobre a importância da representatividade no cinema e na TV ("Ainda somos poucos"), enalteceu o samba ("Sempre foi manifesto, sempre foi filosofia, nunca é uma arte menor") e contou uma história sobre sua mãe ter dado uma "arma" para que ele e seu irmão usassem com sabedoria: uma caneta.
Essa história se conecta com a do próprio Mussum e sua mãe, dona Malvina, encarnada no filme primeiro por Cacau Protásio e depois por Neusa Borges. "Burro preto tem aos montes, mas preto burro não dá!", vaticina a personagem, fundamental na formação do filho. Depois, em um momento de crise existencial de Mussum, ela dirá outra frase de levarmos para a vida: "Não se pode sentar em dois cavalos com a mesma bunda".
Como os bordões deixam entrever, Mussum: O Filmis usa de recursos humorísticos para falar de coisas sérias. A cinebiografia registra os conflitos familiares decorrentes do caráter mulherengo de Mussum (mas sem ênfase: não conta que ele teve três filhos fora de seus dois casamentos) e das exigências profissionais. O filme também não esconde que Mussum gostava bastante de beber — quase sempre está com um copo de cerveja ou de uísque nas mãos —, o que acabou sendo incorporado pelo personagem televisivo.
A transformação definitiva de Antônio Carlos em Mussum se dá quando ele é contratado por Chico Anysio (Vanderlei Bernardino) para atuar na Escolinha do Professor Raimundo. A sequência da troca de figurino, com um toque de gênio de Chico, rendeu aplausos em cena aberta no Palácio dos Festivais. Aliás, houve uma comunhão do público com o filme: algumas piadas são telegrafadas, mas mesmo assim provocaram risadas. Entre os momentos engraçados, estão aqueles em que os personagens erram seus exercícios de futurologia. Como quando Mussum tranquiliza seus colegas de Os Originais do Samba, acreditando que o programa de TV d'Os Trapalhões seria coisa de um ano, no máximo dois — só foi terminar duas décadas depois.
O irônico é que algumas das passagens com os outros três Trapalhões — Renato Aragão, o Didi (Gero Camilo), Manfried Sant'Anna, o Dedé (Felipe Rocha), e Mauro Gonçalves, o Zacarias (Gustavo Nader) — podem fazer chorar. Bate uma nostalgia forte da infância nas cenas que reproduzem a vinheta em animação do programa de TV e os clipes paródicos, como Terezinha (de Chico Buarque, na voz de Maria Bethânia).
Mais adiante, haverá outra cena funga-funga, a do monólogo de Mussum para crianças e adolescentes na escola de samba da Mangueira, onde o ídolo fala sobre as barreiras do racismo, da pobreza e da desigualdade social e estimula sua audiência a sonhar: "A gente pode tudo". É uma frase que casa muito bem com outro trunfo de Mussum: O Filmis: a celebração de negros fundamentais na arte brasileira. Silvio Guindane fez uma espécie de retrato transgeracional e multidisciplinar. Além do próprio humorista, aparecem Cartola (Flávio Bauraqui), Grande Otelo (Nando Cunha), Elza Soares (Larissa Luz), Jorge Ben (Ícaro Silva) e Alcione (Clarice Paixão).
Esse monólogo foi referenciado em um dos discursos mais aclamados na noite deste sábado no Palácio dos Festivais: o de Yuri Marçal, que, a exemplo de Ailton Graça, também conectou a sua trajetória com a de Mussum.
— Quando eu estava estudando teatro e TV, em 2013, um diretor falou assim: "Tem muita gente aqui querendo se formar, muita gente querendo ser ator. Mas uma das pessoas que eu tenho certeza que nunca vai poder ser ator é você, Yuri". Sempre gostei de desafio, então decidi provar para esse diretor e para mim mesmo — relatou o vencedor do Kikito de melhor ator coadjuvante. - A mensagem do filme que mais me emocionou é uma que o Mussum fala no final, sobre a mãe dele ter lutado a vida inteira para ele poder ter oportunidade. Então, quero agradecer neste momento à minha mãe, que eu sei que ela, mesmo sem estudo, batalhou muito para eu ter a oportunidade de fazer o que quiser, de eu poder ter o direito de escolha.
Premiados em longas nacionais
- Melhor filme: Mussum: O Filmis
- Direção: Petrus Cariry, de Mais Pesado É o Céu
- Ator: Ailton Graça, de Mussum: O Filmis
- Atriz: Vera Holtz, de Tia Virgínia
- Ator coadjuvante: Yuri Marçal, de Mussum: O Filmis
- Atriz coadjuvante: Neusa Borges, de Mussum: O Filmis
- Roteiro: Fábio Meira, de Tia Virgínia
- Fotografia: Petrus Cariry, de Mais Pesado É o Céu
- Montagem: Firmino Holanda e Petrus Cariry, de Mais Pesado É o Céu
- Direção de arte: Ana Mara Abreu, de Tia Virgínia
- Desenho de som: Ruben Valdés, de Tia Virgínia
- Trilha musical: Max de Castro, de Mussum: O Filmis
- Prêmio Especial do Júri: Ana Luiza Rios, atriz de Mais Pesado É o Céu
- Menções honrosas: Vera Valdez (atriz de Tia Virgínia) e Martin Macias Trujillo (caracterização de elenco em Mussum: O Filmis)
- Prêmio da crítica: Tia Virgínia, de Fábio Meira
- Júri popular: Mussum: O Filmis, de Silvio Guindane
Documentário e longas gaúchos
O ganhador do Kikito de melhor documentário foi Anhangabaú, dirigido pelo gaúcho radicado em São Paulo Lufe Bollini, que busca conectar os conflitos pelo território da comunidade indígena Guarani Mbya com a resistência da maior ocupação artística da América Latina, a Ouvidor 63, na capital paulista, e o grupo Teatro Oficina Uzyna Uzona.
Na competição de longas gaúchos, Hamlet, de Zeca Brito, arrasou. Foram cinco Kikitos: melhor filme, direção, ator (Fredericco Restori), fotografia (de Brito com Bruno Polidoro, Joba Migliorin e Lívia Pasqual) e montagem (Jardel Machado Hermes). É um trabalho híbrido, costurando documentário e ficção ao cruzar discussões levantadas pelo clássico de Shakespeare com a ocupação das escolas públicas por estudantes em 2016, à época do impeachment da então presidente Dilma Rousseff.
— Apesar de termos derrubado o Bolsonaro, ainda há algo de podre no reino da Dinamarca — disse Restori, se referindo aos problemas da educação pública (o Instituto Estadual de Educação Flores da Cunha, por exemplo, cenário principal de Hamlet, está em reforma há cerca de 10 anos).
— Este é o prêmio mais sagrado do cinema brasileiro — festejou Zeca Brito, que, ao falar de como foi produzido Hamlet, exortou seus colegas de ofício a seguirem um mantra do cineasta Glauber Rocha (1939-1981): — Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça.
Premiados nos longas gaúchos
- Melhor filme: Hamlet, de Zeca Brito
- Direção: Zeca Brito, de Hamlet
- Ator: Fredericco Restori, de Hamlet
- Atriz: Carol Martins, de O Acidente
- Roteiro: Marcela Ilha Bordin e Bruno Carboni, de O Acidente
- Fotografia: Bruno Polidoro, Joba Migliorin, Lívia Pasqual e Zeca Brito, de Hamlet
- Montagem: Jardel Machado Hermes, de Hamlet
- Direção de arte: Richard Tavares, de O Acidente
- Desenho de som: Kiko Ferraz, Ricardo Costa e Christian Vaisz, de Céu Aberto
- Trilha musical: Rita Zart e Bruno Mad, de Céu Aberto
- Júri popular: Sobreviventes do Pampa, de Rogério Rodrigues