Tem sessão de pré-estreia neste fim de semana no CineBancários (somente sexta-feira, 18), no Espaço Bourbon Country (sexta e sábado, 19) e na Sala Paulo Amorim (somente sábado) e entra em cartaz no dia 24 Retratos Fantasmas (2023), filmaço de Kleber Mendonça Filho que abriu, fora de competição, o 51º Festival de Cinema de Gramado. Cineasta de O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019, com Juliano Dornelles), o pernambucano levou sete anos no trabalho de pesquisa, filmagem e edição do longa-metragem, que teve estreia mundial no Festival de Cannes, como hors-concours, foi selecionado para os festivais de Toronto, no Canadá, e Nova York e pretende disputar a vaga de representante do país no próximo Oscar internacional.
Como o título indica, Mendonça Filho retrata um mundo que virou fantasma: o dos cinemas de rua, os cinemas de calçada, ponto de encontro da sociedade e com marquises cujos letreiros tanto documentavam uma época quanto "comentavam" o que acontecia na cidade e no Brasil. Uma foto clássica reproduzida no filme, tirada no Rio de Janeiro em 13 de dezembro de 1968, data em que a ditadura militar emitiu o duríssimo Ato Institucional nº 5, mostra soldados em primeiro plano; ao fundo, o luminoso do Cine Pathé informa o título em cartaz: À Queima Roupa (1967), de John Boorman. Esses letreiros também eram premonitórios: Golpe Fulminante (1998) era a atração nos últimos dias do outrora luxuoso cine Veneza, em Recife.
Retratos Fantasmas é classificado como documentário, mas seu diretor prefere chamar de ensaio, "uma coisa livre", que não se preocupa tanto com a rigidez dos fatos e sim com impressões, sentimentos, atmosferas, e que se permite brincar, usar recursos dos filmes de terror, ficção científica e suspense, fazer colagens de imagem e de som que funcionam tanto como homenagem quanto como ressignificação. É uma coisa livre e extremamente pessoal: narrado em primeira pessoa, começa rememorando o apartamento onde ele morou por cerca de 40 anos e onde realizou muitas cenas de seus curtas e longas, em Recife. A capital pernambucana não é só cenário, também é personagem, mas o filme acaba sendo universal, pois as transformações urbanas sofridas por lá são comuns às outras grandes cidades. "O tempo vai alterando os lugares", resigna-se Mendonça Filho, 54 anos.
Um dos bravos remanescentes é o Cinema São Luiz, que foi construído em 1952 onde antes havia uma igreja anglicana de 1838 e se tornou um templo da cinefilia recifense — "Tem de ficar de joelhos para ver um Glauber ou um Hitchcock". Curiosamente, vários cinemas de rua é que, depois de fechados com a migração do negócio para os shopping centers, foram transformados em igrejas evangélicas. Hoje, as cidades estão tomadas por farmácias, constata o diretor em um final tão inesperado quanto bonito, desde a direção de fotografia à montagem, passando pela música — Rise (1979), de Herb Alpert. Para ver e ouvir mais de uma vez.
Kleber Mendonça Filho: "O tempo passa, as coisas mudam"
Como nasceu o projeto de Retratos Fantasmas?
Eu tinha uma vontade de fazer um filme sobre a ideia de sala de cinema, um espaço que sempre me interessou muito, sempre fui fascinado. Meu projeto de fim de curso de Jornalismo, em 1992, na Universidade Federal de Pernambuco, era sobre isso. E naquela época as grandes salas estavam vivendo seu último grande momento. Tive a oportunidade de testemunhar e registrar isso em câmera VHS e numa Yashica 35mm. Fiz dois documentoarios, O Homem de Projeção, sobre seu Alexandre (projecionista do Art Palácio, um dos cinemas revisitados em Retratos Fantasmas), e o Casa de Imagem. Esse material ficou guardado muitos anos. Eu fui viver mnha vida, trabalhei como crítico de cinema, como jornalista, fiz muitos outros vídeos, experiências audivisuais, fiz curtas-metragens na década de 2000 e na década dee 2010 eu comecei a me destacar com os longas. Acho que em 2016 eu comecei a realmente pensar em fazer um filme, que eu não encaixaria em nenhum formato específico. Talvez um documentário mas filmado como ficção, com fantasia, com relatos pessoais. Comecei a fazer esse filme olhando os meus materiais. meu acervo. e cada vez que eu olhava eu ficava mais encantado, achando que o tempo tinha sido bom para aquele material. principalmente do Art Palácio. Só que em 2016 a gente entendeu, eu e minha companheira, que a gente iria deixar o apartamento onde cresci e vivi por quase 40 anos. E essa preparação para deixar o apartamento me trouxe muitas sensações, sentimentos muito fortes, e isso me levou a entender que eu tinha aquele apartamento filmado de todos os ângulos e de todas as formas. Veio uma sopa na minha cabeça que esse filme que eu queria fazer das salas talvez fosse mais interessante se fosse sobre a imagem dos lugares. Hoje estou muito feliz, acho o filme muito honesto emocionalmente.
Você fala de como as memórias sobre os filmes vistos estão ligadas aos espaços, à arquitetura dos cinemas. Isso se perde nas salas de shopping, mais ou menos padronizadas. Ao mesmo tempo, as novas gerações também assistem a filmes individualmente, na telinha do celular. Como essas questões impactam na fruição do cinema?
É difícil discutir isso. Eu não quero ter o discurso de um tio mais velho, no sentido de sugerir que existe uma maneira certa de fazer a coisa. A minha perspectiva é sempre a de somar experiências. Os jovens podem ver um filme no celular, em 24 partes. Um cara disse no Twitter "Ah, finalmente terminei O Som ao Redor, depois de duas semanas". Ok! (risos). Mas também é muito bom que, no festival Janela, em Recife, os jovens podem ir no São Luiz e dizer "puta que pariu, eu acho que nunca mais vou sair desse lugar". Eu acho triste quando as cidades perdem isso (como os cinemas de calçada) e acham tudo normal. Eu frequento multiplex. mas já tenho mapeadas as salas em que vou e em que não vou. Ah, é na 7? Se fodeu, vou ter de ver no streaming. Ah, é na 8? A 8 é uma boa sala. O melhor dos mundos é quando você soma tudo, e o mercado tem essa lógica de subtrair, de apagar. Você cria uma campanha de sujeira pra cima dos cinemas de calçada e mandar todo mundo pro shopping, Porque lá todo mundo ganha tudo, no estacionamento, no sorvete, na cueca que o cara tem de comprar. "Ah, acho que vou ver um filme." É uma atitude completamente diferente (da que havia antes, quando o cinema em si era a atração). Mas eu evito essa conversa saudosista, espero que o filme não tenha esse tom saudosista. É um filme de papo reto: o tempo passa e as coisas mudam. E no final tem muita farmácia. Isso é bom ou ruim?
Pegando esse gancho, o que se pode dizer de um país onde muitos cinemas deram lugar a farmácias e igrejas?
Eu não quero dar essa chave. Acho que a imagem é muito forte e chocante no final do filme, muito significativa. Mas eu não consigo chegar pra você e dizer: "Estamos numa sociedade doente". É certo que talvez as pessoas estejam precisando de conforto. Existem muitos confortos químicos hoje disponíveis. Claro, há doenças e situações de saúde que exigem medicamentos, mas existem muitas outras estruturas de segurança do ser humano, pra cabeça. Recife deve ter o maior número de farmácias per capita no Brasil. Quando eu era criança, nos anos 1970, eu saía de carro com meus pais, ou minha mãe, ou meu pai, porque eles se separaram, eu lembro muito de passar por muitos cinemas: "Baixa o vidro, vai mais devagar que eu quero ver, que filme é esse?". É claro que ao longo de tantos anos essa paisagem mudou. Não acho que os cinemas se transformaram em farmácias, estou dizendo que a paisagem mudou. E as farmácias são muito visíveis, são todas brancas, com aquela luz forte. Dá dor de cabeça só de passar perto.
Continuando com o final de Retratos Fantasmas, mas sem dar spoilers, pode falar sobre a cena do Uber?
Eu gosto muito da cena. Quando eu estava filmando, pensei muito naquele momento físico de cinefilia, o momento em que você acabou de passar duas horas vendo, sei lá, As Bruxas de Eastwick (1987), com aquela música do John Williams, aqueles efeitos especiais e o Jack Nicholson. Aí o filme acaba, acende a luz e você vai pro lado, pra porta de saída, e aí abrem a porta e você vê que ainda tá de dia, e aí você sai na calçada que tem pedras portuguesas, no São Luiz, e aí tem um espaço de um metro mais ou menos que você tá entre o cinema e a realidade. Eu acho que essa sequência é um pouco isso. Ela começa na realidade e daqui a pouco começa a borrar tudo. Eu não sei o que significa, não quero analisar o meu próprio filme, mas gosto muito do que talvez ela signifique. Acho bonita a cena, gosto do look, do som, da música, parece um filmão de Hollywood. É uma espécie de resumo estranho e enigmático do filme.
Um dos pontos mais fascinantes de Retratos Fantasmas é a atenção dada às marquises dos cinemas de calçada, com letreiros que funcionavam como documento de uma época e que também comentavam, não raro ironicamente, o que acontecia ao redor.
É curioso e bonito. Você tá atravessando a ponte e vê, no São Luiz, Doce Pássaro da Juventude. Eu vi isso quando era criança. O que é isso? É um filme com Paul Newman (1962, dirigido por Richard Brooks). Muitas fotos eu mesmo tirei 30 anos atrás, mas muitas outras fotos eu encontrei em famílias, que são arquivos maravilhosos, e alguns malucos como eu, mais velhos, tinham outras. O Ivan Cordeiro forneceu quatro ou cinco fotos maravilhosas, como a do Moderno, quando estava exibindo Sem Zíper. Não sei se é pornochanchada ou filme americano de sexo, só sei que só tinha homem na fila. Homem velho, homem jovem, homem alto, homem baixo, homem careca, homem de barriga... Que sujeira! (risos). Tudo isso dá um molho sobre a cultura.
Em Aquarius, em Bacurau e também em Retratos Fantasmas, há uma defesa da arte, da cultura, da memória e da educação como armas contra a barbárie e o desmanche. Mas neste novo filme senti um certo apaziguamento teu.
São armas de Constituição. Contra o genocídio, não há apaziguamento, contra gente querendo ganhar dinheiro nas suas costas, tem briga, mas contra a passagem do tempo, o que eu posso fazer? Cada filme tem sua postura. Bacurau, por exemplo, é um filme de gênero sobre genocídio, em uma comunidade que já viveu poucas e boas ao longo da história, e eles naturalmente não iam deixar barato. Acho que o sucesso de Bacurau é que no final das contas a pessoa vai dizer "Caralho, isso faz muito sentido!". A pessoa mais vegana, mais da paz, tá lá, "urrú!" quando estouram cabeças. Porque é humano isso. Sobrevivência, reação, como no (levante do) Gueto de Varsóvia (durante a Segunda Guerra Mundial). No Retratos Fantasmas, a conversa é: o tempo passa, a gente envelhece, um dia os cinemas são abandonados, as coisas mudam. Aliás, esse filme, As Coisas Mudam (1988), do David Mamet, é muito bom. Lembrei muito dele fazendo o filme. As cidades mudam, é uma certeza. Se elas mudam por causa da corrupção, porque alguém tá ganhando grana, é horrível. Mas talvez numa sociedade corrupta como a brasileira isso seja orgânico. Temos leis sofisticadas pra proteger o patrimônio histórico, mas sempre vai se achar uma maneira corrupta de burlar a lei e derrubar uma casa, um prédio. O que aconteceu na Avenida Paulista (em São Paulo) em 1982 dava um filme. Na calada da noite, um desfile de tratores e caminhões esperavam o sinal verde (dos próprios proprietários) para entrar e destruir casarões que corriam risco de serem protegidos.