Um sertão resplandescente, vislumbrado em planos abertos que capturam as texturas do céu grandioso e da terra árida. Jogos de luzes e sombras detalhadamente moldados para pensar dualidades entre, por exemplo, a miséria cotidiana e o sonho da redenção pela religiosidade. Essas imagens são de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), o clássico de Glauber Rocha, mas nem sempre podiam ser absorvidas em sua totalidade.
Agora podem. Porque Paloma Rocha, filha de Glauber, e o produtor Lino Meireles capitanearam um projeto de restauração que durou três anos e que acaba de disponibilizar o filme para ser visto e revisto em 4K, o formato padrão de altíssima resolução digital.
A primeira sessão do “novo” Deus e o Diabo ocorre nesta quarta-feira (18/5), no Festival de Cannes, onde o filme estreara, há 58 anos. Como a confirmar o prestígio desse que é um dos melhores, se não o melhor longa-metragem brasileiro de todos os tempos, a exibição foi na seção Cannes Classics, dedicada à preservação do patrimônio cinematográfico mundial.
Trata-se do segundo longa do diretor e de um marco da fase mais badalada do Cinema Novo, que refletiu sobre o Brasil a partir do sertão e dos sertanejos. Depois, Glauber faria Terra em Transe (1967), outra de suas obras-primas, e voltaria à Cannes para exibir O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro (1969), continuação da jornada de um dos personagens mais enigmáticos de Deus e o Diabo – o exterminador de cangaceiros Antônio das Mortes.
Agora, como em todos os retornos ao universo de Deus e o Diabo, será possível descobrir nuances que nem os pesquisadores mais especializados conhecem. É o que indica Lino Meireles na entrevista a seguir, na qual dá detalhes do que ele e Paloma Rocha puderam perceber em suas imagens – e que antes jamais haviam conseguido notar.
GZH – O que o levou ao projeto de restauração de Deus e o Diabo na Terra do Sol?
Lino Meireles – Conheci Paloma Rocha por meio de um filme sobre o cinema brasileiro que dirigi (Candango: Memórias do Festival). Quando comecei a pensar em restaurar filmes antigos, pensei logo em Glauber, que tem vários filmes sem distribuição, como Câncer, Claro e Cabeças Cortadas. Aí Paloma me surpreendeu com a possibilidade de ser Deus e o Diabo. Não imaginei que seria possível, porque teve lançamento em DVD. E é um filme que formou meu pensamento, que trouxe os olhos do mundo para o cinema brasileiro.
O quanto a experiência de rever Deus e o Diabo em 4K possibilita descobrir novas nuances do filme?
Quem viu o filme desse jeito só o fez em salas de cinema na década de 1960. E, mesmo assim, salas comerciais não tinham a melhor projeção e o melhor som devido a uma precariedade de mercado. Portanto, mesmo tratando-se de uma restauração, será como um filme novo até para quem já o conhece.
O sonho de lançar 'Deus e o Diabo', neste momento, é a confirmação do legado do cinema brasileiro: resistência.
Em meio ao trabalho, vocês descobriram algo específico que podem contar aos leitores?
O primeiro impacto que tive foi de ver com clareza as nuvens da paisagem e a textura das roupas. O vaqueiro Manuel, por exemplo, carrega no peito pequenas medalhas após seu encontro com o beato Sebastião. Eu não havia observado isso antes. A Paloma, em uma cena em Monte Santo, notou que um objeto que ela pensava ser uma pedra na verdade era uma pessoa, um figurante.
A restauração deste monumento da cultura nacional vem em um momento de sucateamento da memória audiovisual brasileira, com cortes de verbas para a Cinemateca Brasileira, por exemplo. De alguma forma, o projeto é uma resposta?
Restaurar um filme brasileiro é sempre um ato político – da mesma forma que fazer um filme. Os cortes de fomento para novas obras foram drásticos nos últimos anos, mas a falta de recursos para a preservação de nossa memória artística, além de trágica, é contínua. O sonho de lançar Deus e o Diabo, neste momento, é a confirmação do legado do cinema brasileiro: resistência. Esperamos encorajar esse tipo de restauração Brasil afora. O sonho de lançar Deus e o Diabo, neste momento, é a confirmação do legado do cinema brasileiro: resistência.