A relação do Rio Grande do Sul com o Cinema Novo sempre foi de uma certa distância (a rigor, o Estado não teve cineastas cinemanovistas) e até alguma rejeição (nos primeiros anos, a crítica local mostrou-se menos entusiasta dos filmes de Glauber Rocha, por exemplo, do que em outras regiões). Mas coube a um pesquisador de Porto Alegre fazer uma das pesquisas mais detalhadas da formação, do desenvolvimento e do legado do movimento que introduziu a modernidade cinematográfica no Brasil – com filmes empenhados em buscar uma identidade genuinamente brasileira.
No livro Das Redes ao Estado: o Capital Político no Cinema Novo, Luciano Miranda levanta inclusive as origens familiares de Glauber, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman, entre outros, buscando inquietações em comum e as idiossincrasias de seus lugares de fala. A fundação da Embrafilme, o Cinema Marginal e a produção nacional posterior também perpassam o texto, atestando o quanto o Cinema Novo foi um marco para o fortalecimento da expressão audiovisual no país.
O autor – graduado em Jornalismo e Direito, doutor em Ciência Política pela UFRGS, onde atua como professor associado –, respondeu as seguintes questões a partir de uma troca de e-mails.
Os cineastas do “núcleo duro” do cinema novo, como você chama, vieram de “posição social superior”. Trata-se de uma característica comum à de outros movimentos culturais da época, mas menos estudado no Cinema Novo, na comparação, por exemplo, com a Bossa Nova. O quanto essa origem é determinante para o movimento?
Ela é essencial. Implica capital cultural em circulação junto a redes de relações e prestígio. Nisso se podem constatar vínculos de reciprocidade entre os cinemanovistas e suas relações com a conjuntura política e cultural, associada à estrutura da produção cinematográfica. Distinguiram-se de outros cineastas por buscarem um “projeto” à instituição estatal. Com efeito, o processo de socialização política foi condicionado pela “convergência” dos cineastas a uma “cultura política”, pela qual os segmentos intelectualizados da sociedade avalizaram uma política nacional-popular, isto é, variações do nacionalismo. Perceberem-se como intelectuais compartilhando visão politicista da cultura acarretou atuarem de modo semelhante a outras gerações de intelectuais brasileiros que assumiram compromisso ou “missão” a determinado projeto de nação. No caso dos cinemanovistas, pelo viés propriamente cultural, buscaram a elevação do estatuto cultural do cinema, por um lado, de modo que fosse reconhecido seu valor artístico, mediante filmes que expressaram, por outro, um país em suas contradições, desigualdades e movimentos do “povo”, desde diferentes recortes, como ator central às narrativas. Pelo viés político, buscaram a organização da cadeia produtiva do cinema, não somente a fim de disciplinar o circuito produção-distribuição-exibição como efetivamente projetar e realizar uma estrutura institucional estatal que organizasse e financiasse esse circuito – êxito obtido na Embrafilme (fundada em 1969). Em suma, surgiu uma conformação de sucesso, em que cineastas – preocupados com a dimensão artística de seus filmes e o seu valor como autores – não abriram mão da dimensão comercial associada ao Estado, sem que essa “operação” político-econômica implicasse descrédito ao seu movimento político-cultural.
Não foi por acaso que o reconhecimento local (do Cinema Novo no Brasil) veio depois do reconhecimento externo (fora do país).
Os cinemanovistas tiveram suas formações em parte no Estado Novo, sob forte nacionalismo. além de O movimento de algum modo responder a esse contexto (e também ao modernismo e às chanchadas), teve influências do Exterior, já que surgiu em um momento de renovação da linguagem do cinema a partir do neorrealismo italiano. O que de fato inspirou e motivou esses cineastas? Não existe uma única inspiração ou motivação. São várias as influências. Pode-se dizer que o que existe em comum entre eles é um fundamento originado de diferentes concepções do nacionalismo – mediadas por alguma doutrina: integralista, comunista ou católica, especialmente. A figura de Getúlio Vargas se apresentava às vidas das famílias desses jovens de modo que não podiam estar indiferentes ao seu peso nos destinos do país. Nesse contexto, tampouco podiam deixar de contar com a inspiração dos modernistas brasileiros (não só a de suas obras como a das pessoas deles mesmos, já que muitos modernistas eram amigos de suas famílias). Por outro lado, na medida em que seus filmes “dialogavam” com uma política nacional-popular, de fato uma primeira influência estrangeira importante foi a do neorrealismo italiano, cujas obras realizavam denúncia ou crítica social. Em especial nos primeiros filmes de Nelson Pereira dos Santos, pode-se constatar essa influência. Todavia, outras foram sendo incorporadas ao longo da história do Cinema Novo. A noção de “cinema de autor”, por exemplo (criada a partir da “política dos autores” da Nouvelle Vague francesa), permitiu que os cineastas se libertassem de determinados esquemas ou códigos – como os do próprio neorrealismo. Em Glauber Rocha, pode-se constatar o peso da influência de Bertolt Brecht e de Frantz Fanon na Estética da Fome. Então a teia de inspirações e motivações é bastante complexa e diversificada, mais evidenciando a elevada posse de capital cultural desses cineastas.
Com formações distintas, os cinemanovistas encontraram-se na militância cultural, que incluía a crítica. O quanto o estabelecimento de redes foi fundamental para difundir suas ideias? E o quanto isso pode servir de inspiração para movimentos posteriores?
A formação de redes é central ao sucesso do núcleo duro do Cinema Novo. Puderam fazer parte de algumas delas em grande medida por causa de onde e quando nasceram. No entanto, atuaram de modo eficaz ao estabelecimento de vínculos junto a outras. Aqui destaco as redes articuladas a partir do estrangeiro – sobretudo França e Itália –, em que atuaram em escolas de cinema, junto à crítica, aos festivais etc. Isso permitiu que o Cinema Novo obtivesse reconhecimento internacional antes do nacional. Assim, o Brasil “importou” o Cinema Novo brasileiro. Portanto, ocuparam posições em redes diversas. Dada a complexidade do campo cultural, entender esse processo – e a forma pela qual assumiram suas práticas – é essencial aos neófitos que aspiram ao sucesso nesse espaço competitivo de produção de bens artísticos.
A que você atribui a rejeição de parte da crítica – críticos gaúchos da época, por exemplo – aos cinemanovistas, a despeito de realizarem filmes hoje aclamados e que deram visibilidade internacional até então inédita ao cinema brasileiro? Atribuo às frágeis instâncias de consagração e hierarquização do campo cultural no Brasil, país periférico que depende de prévia legitimação externa aos bens – inclusive culturais – que produz. Então não foi por acaso que o reconhecimento local veio depois do reconhecimento externo.
Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, talvez os dois nomes mais proeminentes do Cinema Novo, tiveram atuações e trajetórias bem distintas – algo semelhante, por exemplo, às de Truffaut e Godard na Nouvelle Vague. O que sua pesquisa descobriu sobre a relação deles entre si e com os colegas, incluindo Luiz Carlos Barreto e Roberto Farias, que já na década de 1960 dedicavam-se a filmes com apelo popular?
Nos anos 1950, Glauber já sabia da existência de Nelson mediante seus primeiros filmes e sua atuação nos congressos de cinema. Recém chegado ao Rio vindo da Bahia, Glauber foi integrado por Nelson à equipe de seu Rio, Zona Norte (1957). A essa época só faltava Gustavo Dahl no Rio de Janeiro, cidade em que os cinemanovistas interagiam especialmente no bairro de Botafogo. Entre os fatores que distinguem uma elite de outros agrupamentos é que ela é pequena e participa dos mesmos espaços. Todos se conheciam e atuavam de modo articulado.
O que fez com que cineastas inicialmente unidos tomassem caminhos diferentes no prosseguimento de suas carreiras? Houve caracterização da “crise” do Cinema Novo, produzida por dois fatores: a “descoberta” de uma complexidade maior à análise da sociedade brasileira; e o quadro político a partir da ascensão dos militares ao poder. Acrescente-se o reconhecimento de um esgotamento temático. Gustavo Dahl dizia que o número de “maneiras de dizer que é preciso dar de comer aos que têm fome e de beber aos que têm sede” é limitado. Ademais, “há 2 mil anos isso vem sendo repetido”. Então, num primeiro momento, pode-se constatar pressão interna para a comunicação com o público ante essa complexidade. Num segundo, de pressão externa, sobretudo após o Maio de 1968 na França, as problemáticas a serem enfrentadas pelos filmes aprofundaram-se para além da luta de classes, passando mais a valorizar questões identitárias, como de gênero, raça e orientação sexual. Saber comunicar-se nos filmes, incorporando ao mesmo tempo a complexidade temática, possibilitou aos cineastas o aprofundamento naquilo que os caracterizava em suas singularidades. Em suma, de modo coerente a um “cinema de autor” (sem se obrigarem à reivindicação da noção), é esse processo que define as identidades autorais.
Que legado você acredita que o Cinema Novo deixou?
A possibilidade de um cinema de identidade brasileira viabilizado por uma estrutura institucional criada e gerida por brasileiros. Essa possibilidade ao mundo da cultura passa a ser exequível, enquanto projeto, a toda atividade produtiva empreendida no Brasil.