O 51º Festival de Cinema de Gramado mal começou e já tem um forte favorito para conquistar Kikitos — ênfase no plural — no próximo sábado (19). Na segunda noite de competição dos longas brasileiros, neste domingo (13), o público do Palácio dos Festivais aplaudiu em cena aberta — ou seja, ainda durante a exibição — o filme Tia Virgínia, escrito e dirigido por Fábio Meira e estrelado por Vera Holtz, Arlete Salles, Louise Cardoso e Antonio Pitanga, com participação especial da veterana atriz, modelo e figurinista Vera Valdez.
Trata-se de um grande termômetro para medir a aprovação de um filme, ou a sua sintonia com a plateia, pois essas palmas são absolutamente espontâneas. Outro indicativo é o tamanho da fila que se formou, após a sessão, para cumprimentar a equipe.
Ainda sem confirmação de data para estrear no circuito comercial, Tia Virgínia é o segundo longa-metragem do goiano Meira, que começou a carreira como assistente de direção de Ruy Guerra em O Veneno da Madrugada (2004). Seu primeiro, As Duas Irenes (2017), ganhou quatro prêmios no Festival de Gramado: roteiro (do próprio cineasta), ator coadjuvante (Marco Ricca), direção de arte e melhor filme pela crítica.
Como se percebe pelos principais nomes do elenco, Tia Virgínia é um tipo raro de filme, por dar tanto protagonismo aos idosos. Holtz tem 70 anos, Salles, 81, Cardoso, 68, Pitanga, 84, e Valdez, 87. Seus personagens habitam um cenário cheio de elementos muito comuns nos lares da classe média brasileira que parecem ter parado no tempo — é primorosa a direção de arte assinada por Ana Mara Abreu, vencedora do Kikito em 2002 por Durval Discos (aliás, outro título que foi aplaudido em cena aberta no Palácio dos Festivais e que depois se consagrou na noite de premiação, com um total de sete conquistas). Sua ambientação inclui um relógio de parede adornado por uma coleção de pratos, um enorme presépio, um pequeno ventilador de pás azuis e a cristaleira com as intocáveis taças que são do casamento da matriarca.
Encarnada por Vera Holtz, a protagonista está em uma situação que também será fácil de reconhecer: a da irmã que não se casou, nunca teve filhos e agora, meio que por obrigação, meio que por codependência, se vê na condição de mãe da própria mãe (papel de Vera Valdez), uma figura descarnada — vide a crua cena do banho — com quem insiste no diálogo mesmo que de lá só receba o silêncio e o olhar vago decorrentes da demência.
Virgínia tem duas irmãs, que estão vindo para passar o Natal: Valquíria (Louise Cardoso), divorciada, chegará com o filho universitário (Iuri Saraiva); Vanda (Arlete Salles) com o marido, Tavares (Antonio Pitanga), e uma filha, Ludmila (Daniela Fontan). A trama se desenrola ao longo de um único dia, acompanhando os preparativos da ceia e os conflitos familiares — ora engraçados, ora dolorosos —, causados por motivos que vão da comida à bebida, passando, claro, por inveja, dinheiro, chantagem emocional, hipocrisia e outros quetais.
No jantar, Virgínia pretende usar o vestido que só usou uma vez, na formatura — é como se fosse o símbolo de uma vida não vivida. Sua existência não se deu na luz do centro do palco, como imaginava quando ainda sonhava em ser atriz, mas nas sombras — noção reforçada pelo diretor de fotografia Leonardo Feliciano, de Marte Um (2022), que trabalha bastante com a penumbra.
Já Vera Holtz ilumina todas as cenas. Candidatíssima ao Kikito de melhor atriz, a eterna Lucinda da novela Avenida Brasil (2012) faz de Virgínia uma mistura de rancor e carência afetiva, com variações dramáticas que surpreendem o espectador — e até os demais personagens. Em dado momento, a câmera pode flagrá-la em solitário e silencioso sofrimento; em outro, ela é como um gato arisco a ameaçar Vanda.
Virgínia guarda mágoas e também um segredo. É uma das cartas na manga de Fábio Meira, que, no comando de um time talentoso (quase todos podem aparecer entre os coadjuvantes premiados), esconde o jogo até o final deste azeitado equilíbrio entre drama e comédia. É impossível prever com exatidão qual será o desfecho. Eu pensei em pelo menos três, mas nenhum coincidiu com o que acontece ao longo de uma sequência antológica. O único pecado de Tia Virgínia é não ter terminado aí, naquele close, preferindo adicionar duas ceninhas que pouco acrescentam. Mas nada que abale seu status de favorito do 51º Festival de Gramado, pelo menos até que surja outro filme tão envolvente na trama e tão humano no retrato dos personagens.