Não é só com a ceia de Natal que podemos ficar empanturrados: às vezes, a positividade associada à celebração pode ser excessiva.
Para contrabalançar, fiz uma seleção de filmes que fogem da receita básica natalina, a das comédias românticas e das histórias de redenção.
Os 10 títulos abaixo (todos disponíveis no streaming) ou são tristes, ou são violentos. Até contam com alguns personagens que encontram certo tipo de paz com eles mesmos. Mas o sabor é amargo.
1) A Escolha de Sofia (1982)
A lista só poderia começar com o título que virou expressão: invoca a imposição de se tomar uma decisão difícil sob pressão e enorme sacrifício pessoal. O filme dirigido por Alan J. Pakula e baseado no romance homônimo publicado em 1979 por William Styron valeu a Meryl Streep o Oscar de melhor atriz. Ela interpreta Sofia, uma polonesa que, sob acusação de contrabando, é presa com seus dois filhos pequenos, um menino e uma menina, no campo de concentração de Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial. Um sádico militar nazista dá a ela a opção de salvar apenas uma das crianças da execução, ou ambas morrerão. (Para aluguel em Amazon Prime Video, Apple TV e Google Play)
2) Na Captura dos Friedmans (2003)
Indicado ao Oscar, o documentário de Andrew Jarecki é sobre uma família dos EUA que registrou em vídeo seu próprio desmoronamento. Mostra as investigações e o julgamento do renomado professor de piano e computação Arnold Friedman e o caçula de seus três filhos, Jesse, acusados de abusar sexualmente de dezenas de meninos nos anos 1980. O cruzamento dos depoimentos de familiares, policiais, advogados, promotores, juízes, jornalistas, ex- alunos, supostas vítimas e seus pais deixa entrevistados e espectadores perplexos. Jarecki diz: "No nível filosófico, o filme é sobre a natureza ilusória da verdade". É sobre como a memória pode ser manipulada de acordo com nossas necessidades. (HBO Max)
3) O Segredo de Brokeback Mountain (2005)
Brokeback é o nome da montanha onde um vaqueiro e um caubói de rodeio vivem um romance secreto. Sob direção de Ang Lee, Heath Ledger tem um desempenho inesquecível na pele de Ennis del Mar, que engole suas palavras para tentar engolir junto seus sentimentos em relação a Jack Twist (Jake Gyllenhaal). Ennis é um homem que se esconde dos outros e de si mesmo, mas, quando enfim está sozinho, permite-se um gesto delicado e doído como aquele afago na jaqueta jeans que Jack costumava usar. Ganhou três Oscar (direção, roteiro adaptado e trilha sonora) e concorreu a outros cinco, incluindo melhor filme, ator (Ledger), atriz coadjuvante (Michelle Williams) e ator coadjuvante (Gyllenhaal). (Netflix e Star+)
4) Feliz Natal (2008)
Não se deixe enganar pelo nome. No filme dirigido por Selton Mello, o cenário é uma reunião familiar na qual explodem ressentimentos acumulados. O pavio é aceso com a chegada de Caio (Leonardo Medeiros), o filho desgarrado, recebido pelo rancor do pai (Lúcio Mauro), o torpor da mãe alcoólatra (encarnada pelo ícone Darlene Glória) e a indiferença do irmão (Paulo Guarnieri) e da cunhada (Graziella Moretto). (Looke)
5) Não me Abandone Jamais (2010)
Adaptação do aclamado romance de Kazuo Ishiguro, o filme dirigido por Mark Romanek acompanha, no início do século 20, a amizade entre três jovens internos de uma escola britânica. Keira Knightley, Carey Mulligan e Andrew Garfield vivem um triângulo, na medida do possível, amoroso. Seus personagens descobrem não apenas seus sentimentos amorosos mútuos, mas como lidar com um destino sombrio e predeterminado que os aguarda no futuro próximo — a história aproxima o melodrama clássico da ficção científica. (Star+)
6) Amor (2012)
Assim escreveu o jornalista Marcelo Perrone, em Zero Hora, quando esta obra francesa do austríaco Michael Haneke estreou nos cinemas de Porto Alegre: "Talvez seja o mais belo e corajoso filme sobre um tema em torno do qual se dá muitas voltas para não se abordar de frente — o apagar das luzes de uma relação diante da decrepitude de corpo e mente". Haneke retrata a reta final do casamento de Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva), octogenários que vivem com conforto num amplo apartamento em Paris. Apaixonados um pelo outro, eles também são devotados à música clássica. Até que a ex-professora de piano sofre um derrame que dá início ao seu progressivo definhamento. Georges se recusa a interná-la em uma clínica e decide cuidar da mulher em casa, incorporando os elementos de um novo e mórbido ritual: remédios, papinha, fraldas geriátricas, o diálogo que se transforma em monólogo, o amor que se transforma em... outra coisa. (Reserva Imovision)
7) Mad Max: Estrada da Fúria (2015)
Neste pós-apocalíptico faroeste de comboio — uma espécie de versão siderada do clássico No Tempo das Diligências (1939) —, o cineasta australiano George Miller retoma o protagonista da trilogia Mad Max (1979-1985), agora vivido por Tom Hardy, mas quem assume as rédeas da trama é a Imperatriz Furiosa encarnada por Charlize Theron. Sua personagem se rebela contra Immortan Joe: resolve resgatar da Cidadela governada com mão de ferro as Cinco Noivas, as mulheres que o vilão mantinha aprisionadas para lhe trazer filhos "perfeitos". É o ponto de partida para uma caçada incessante e eletrizante pela inóspita e hipnótica paisagem da Namíbia, na África, onde o longa-metragem foi rodado e onde o diretor de fotografia John Seale apostou no contraste entre variações do laranja, indo do amarelo ao vermelho, e o azul para ajudar o espectador a centrar sua atenção na ação que se desenrola — mas esta versão aqui, lançada há poucos dias em uma plataforma de streaming, é em preto e branco, que Miller considera a melhor. E a ação está sempre no centro da cena, que é limpa, embora selvagem. Uma tremenda lição a cineastas que apresentam sequências sujas e confusas como sinônimo da urgência e do caos de um combate. (Amazon Prime Video)
8) Uma Mulher Alta (2019)
O filme do russo Kantemir Balagov — troféu de melhor diretor na mostra Um Certo Olhar do Festival de Canes — é inspirado no livro A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, da jornalista e escritora bielorrussa Svetlana Aleksievitch, Nobel de Literatura em 2015. A personagem do título é a taciturna Ilya, a Grandona, interpretada por Viktoria Miroshnichenko. Ela é uma jovem ex-combatente acometida por um transtorno de estresse pós-traumático. De vez em quando, trava, balbucia, fica catatônica. Ilya vive na Leningrado dos últimos meses de 1945 na companhia de outra mulher que lutou contra os alemães, agora sua colega no trabalho em um hospital para veteranos de guerra: a radiante Masha (Vasilisa Perelygina), que deseja gerar um filho como forma de se afastar da morte.
Três cenas resumem a melancolia aniquilante de Uma Mulher Alta. Em uma delas, no hospital, um personagem indaga como uma criança poderia reconhecer o latido de um cachorro — "Eles não foram todos mortos?" (e, não está dito, transformados em cães-bomba ou mesmo alimento). Em outra, Masha observa, no consultório do médico Ivanovitch (Andrey Bykov, sinistramente carismático), um porta-retrato dos filhos dele e pergunta: "São lindos. Estão vivos?". Na terceira, Ilya está brincando com um menino pequeno quando sofre um de seus ataques e acaba sufocando o garoto. (MUBI —procure por Dylda, o título original, ou Beanpole, o nome em inglês)
9) Laço Materno (2020)
Baseado em um caso real ocorrido em 2014, o filme do japonês Tatsushi Omori tem uma tristeza avassaladora e impregnante. Shuhei (interpretado por Sho Gunji na infância e por Daiken Okudaira na adolescência) é um menino que mora com a mãe, Akiko (Masami Nagasawa, em desempenho ao mesmo tempo cativante e revoltante). Já nas cenas iniciais, percebemos a toxicidade daquela relação. Sim, Akiko é capaz de lamber o joelho esfolado do filho e leva Shuhei para brincar na piscina, mas a ela só importa o próprio prazer. Isso inclui o vício em álcool, em cigarro e em pachinko, um típico jogo eletrônico de azar do Japão. O comportamento errático impede que Akiko mantenha seus empregos, então ela vive pedindo dinheiro emprestado para os pais e para a irmã. Só que sua família já não tem mais paciência para lidar com a ovelha desgarrada. A situação de Shuhei piora quando Akiko conhece o igualmente inconsequente Ryo (Sadao Abe). Omori é sintético e eficaz na composição das cenas, na comunicação sem palavras, na combinação entre aquilo que vemos e aquilo que ele não mostra. E vai apertando o coração do espectador sem precisar, necessariamente, usar as mãos, usar da violência — essa é sobretudo, mas não exclusivamente, psicológica. (Netflix)
10) O Homem do Norte (2022)
É o terceiro filme do diretor Robert Eggers, o mesmo de A Bruxa (2015) e O Farol (2019). Em O Homem do Norte, ele conta a violenta história de uma vingança viking. O protagonista vivido pelo bombadíssimo Alexander Skarsgård se chama Amleth e é baseado na lenda escandinava que inspirou a peça Hamlet, de Shakespeare. Depois de testemunhar a morte do rei Aurvandil (Ethan Hawke), traído pelo irmão bastardo do monarca, Fjolnir (Claes Bang), o príncipe Amleth jura vingar o pai e salvar a mãe (Nicole Kidman). Os grandes momentos não estão nas explosões de butalidade nem no clímax, no qual a computação gráfica tem forte presença. São as passagens em que Eggers estende um olhar mais antropológico para os vikings, permitindo recepções paradoxais. (NOW)