Os filmes do 51º Festival de Cinema de Gramado conversam entre si, disse ao repórter Carlos Redel, de GZH, o ator Caio Blat. Ele é um dos três curadores do evento que, na noite deste sábado (12), exibiu seu filme de abertura, o documentário Retratos Fantasmas, de Kleber Mendonça Filho, e deu início às competições de longas-metragens brasileiros, com Angela, de Hugo Prata, e de curtas nacionais: Yâmi Yah-Pá: Fim da Noite (RJ), dirigido por Vladimir Seixas e protagonizado pela indígena Rosa Peixoto, e Deixa (RJ), assinado por Mariana Jaspe e estrelado por uma vigorosa Zezé Motta, 79 anos.
Duas vezes premiado como melhor ator no Palácio dos Festivais (por Bróder, em 2010, e por Uma Longa Viagem, em 2011), Blat usou como exemplos a ficção Mais Pesado É Céu, de Petrus Caririy, e o documentário Memórias da Chuva, de Wolney Oliveira. Com sessões marcadas para o mesmo dia, nesta segunda-feira (14), são duas produções cearenses que abordam o caso de Jaguaribara, município interiorano que, em meados da década de 1990, foi abandonado para a construção de uma represa, o açude Castanhão. Ele também poderia ter citado o protagonismo feminino nos filmes e nas homenagens — as cinco principais distinções serão entregues a mulheres: Laura Cardoso e Léa Garcia receberão o Troféu Oscarito, a produtora Lucy Barreto ganhará o Eduardo Abelin, Alice Braga, o Kikito de Cristal, e Ingrid Guimarães, o Cidade de Gramado.
Mas há mais duas conversas importantes citadas na entrevista. Quando perguntado sobre o obscurecimento dos filmes nacionais nas salas de cinema, relegados a pequenas brechas na programação, quase nunca em horário nobre e não raro sobrepondo-se uns aos outros na data da estreia (no dia 3 de agosto, foram lançados três longas-metragens gaúchos), Blat apontou a necessidade da renovação da política de cota de tela, que determina um mínimo de tempo para a exibição de obras brasileiras, com dias e horários fixados pelo governo. Essa conversa é urgente, como afirmou a ministra da Cultura, Margareth Menezes, na manhã de sábado, quando fez uma breve participação na cerimônia de abertura oficial do Festival de Gramado, realizada na Sociedade Recreio Gramadense. Ela estava acompanhada por Joelma Oliveira Gonzaga, secretária do Audiovisual, e contou ter a expectativa de que vá à votação no Congresso na semana que vem o Projeto de Lei nº 3696, apresentado em 2 de agosto pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), que renova até 2043 a cota de tela.
Só que de nada adianta ter oferta se não houver demanda, certo? Aí entra uma terceira conversa referida por Blat: os filmes têm de buscar o diálogo com o grande público.
Nesse sentido, é exemplar a seleção feita pelo paulista Caio Blat com a atriz argentina Soledad Villamil e o crítico gaúcho Marcos Santuário. Concorrem aos Kikitos filmes protagonizados por grandes estrelas da TV, como Isis Valverde (Angela), Grazi Massafera e Reynaldo Gianecchini (Uma Família Feliz), Vera Holtz (Tia Virgínia), Marcos Palmeira e Emmanuelle Araújo (O Barulho da Noite); filmes sobre artistas populares (Mussum, o Filmis e o documentário Luis Fernando Verissimo: O Filme); e filmes sobre o povo trabalhador (os motoboys do documental Da Porta pra Fora, que não pararam durante a pandemia). Esses nomes estelares ajudam o Festival de Gramado a conversar mais com a expectativa da cidade, que curte o desfile no tapete vermelho. E o evento de 2023 também deu início a uma conversa com um público que cresceu durante a era covid-19, o do streaming: pela primeira vez, haverá a exibição (fora de competição) de um seriado. Nesta segunda-feira (14), será apresentado o episódio de estreia de Cangaço Novo, que entra em cartaz no Amazon Prime Video no dia 18.
Quem sabe este diálogo com o público seja um caminho, um futuro para Gramado?
O irônico é que os dois longas-metragens exibidos na noite de sábado lançam um olhar para o passado — mas sem deixar de espelhar o presente. Só que os resultados foram bem distintos, o que se pôde medir pelas palmas ao final de cada sessão: entusiasmadas e demoradas após Retratos Fantasmas, protocolares e curtíssimas depois de Angela.
Cineasta de O Som ao Redor (2012), Aquarius (2016) e Bacurau (2019, com Juliano Dornelles), Kleber Mendonça Filho levou sete anos no trabalho de pesquisa, filmagem e edição de Retratos Fantasmas, que teve estreia mundial no Festival de Cannes, em maio, como hors-concours, foi selecionado para os festivais de Toronto, no Canadá, e Nova York e pretende disputar a vaga de representante do país no próximo Oscar internacional. Como o título indica, ele retrata um mundo que virou fantasma: o dos cinemas de calçada, ponto de encontro da sociedade e com marquises cujos letreiros tanto documentavam uma época quanto "comentavam" o que acontecia na cidade e no Brasil. Esses letreiros também eram premonitórios: "Golpe Fulminante" era o título em cartaz nos últimos dias do outrora luxuoso cine Veneza, em Recife.
Retratos Fantasmas é classificado como documentário, mas seu diretor prefere chamar de ensaio, "uma coisa livre", que não se preocupa tanto com a rigidez dos fatos e sim com impressões, sentimentos, atmosferas, e que se permite brincar, usar recursos dos filmes de terror, ficção científica e suspense, fazer colagens de imagem e de som que funcionam tanto como homenagem quanto como ressignificação. É uma coisa livre e extremamente pessoal: narrado em primeira pessoa, começa rememorando o apartamento onde morou por cerca de 40 anos e onde realizou muitas cenas de seus curtas e longas, em Recife. A capital pernambucana não é só cenário, também é personagem, mas o filme acaba sendo universal, pois as transformações urbanas sofridas por lá são comuns às outras grandes cidades. "O tempo vai alterando os lugares", resigna-se Mendonça Filho.
Um dos bravos remanescentes é o Cinema São Luiz, que foi construído em 1952 onde antes havia uma igreja anglicana de 1838 e se tornou um templo da cinefilia recifense — "Tem de ficar de joelhos para ver um Glauber ou um Hitchcock". Curiosamente, vários cinemas de rua é que, depois de fechados com a migração do negócio para os shopping centers, foram transformados em igrejas evangélicas. Hoje, as cidades estão tomadas por farmácias, constata o diretor em um final tão inesperado quanto bonito (desde a direção de fotografia à montagem, passando pela música — Rise, de Herb Alpert). Confira a partir do dia 24 de agosto, quando Retratos Fantasmas estreia nos cinemas.
Se Retratos Fantasmas mergulha no passado para fazer refletir sobre o presente, a ficção Angela se debruça sobre um caso emblemático dos anos 1970 que acabou de voltar à tona. Quando, em 1º de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por unanimidade proibir o uso da tese de legítima defesa da honra para justificar a absolvição por feminicídio, a ministra Cármen Lúcia lembrou de Angela Diniz. No dia 30 de dezembro de 1976, aos 32 anos, em uma casa na praia de Búzios (RJ), a socialite mineira foi assassinada a tiros pelo seu companheiro, Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street (morto em 2020, aos 86 anos), inconformado porque ela não queria mais continuar com ele.
O julgamento do caso aconteceu em 1979. Doca Street foi representado pelo renomado advogado Evandro Lins e Silva, que usou como tese a legítima defesa da honra. Para convencer o júri, afirmou que Angela era uma "mulher fatal", capaz de levar qualquer homem à loucura. Na época, matar "por amor" ou em descontrole "sob forte emoção" eram argumentos aceitos pelos jurados. Doca acabou condenado a apenas dois anos de prisão, que respondeu em liberdade. A sentença branda, porém, mobilizou o movimento feminista. Graças aos protestos, ele foi levado novamente a julgamento em 1981. Neste segundo júri, foi condenado a 15 anos de prisão por homicídio. Cumpriu apenas quatro em regime fechado. Depois, progrediu para o semiaberto.
A história de Angela e Doca é recontada pela roteirista Duda de Almeida no longa-metragem dirigido por Hugo Prata, o mesmo do filme (2016) e da minissérie (2019) sobre Elis Regina. A protagonista é vivida com muita entrega por Isis Valverde, que, quando anunciou que faria o papel, escreveu nas redes sociais que "Os argumentos não mudam muito, mesmo 45 anos depois. Se somos agredidas ou mortas, sempre querem nos culpar: nós, as vítimas"; e, no palco do Palácio dos Festivais, agradeceu a chance de "poder gritar por todas nós o que ela (Angela) não pôde gritar" — o que inclui frases como "A lei nunca está do nosso lado, a lei é dos homens" e "Eu estou na minha casa, vou usar a roupa que eu quiser". Ele, identificado apenas como Raul (o apelido jamais é citado), é interpretado por Gabriel Braga Nunes, que consegue ser tanto um homem ameaçador quanto um homem patético.
Apesar do desempenho do par central, o filme fracassa. Do começo ao fim, com breves momentos de força.
Para início de conversa, o roteiro pressupõe que o espectador é bastante familiarizado com a vida de Angela Diniz. Ela aparece aos nossos olhos em uma festa na casa de seu então namorado, o colunista social Ibrahim Sued (Gustavo Machado). Não sabemos nada de sua história pregressa, referida em diálogos não muito consistentes a respeito do desquite (não havia divórcio na época) com um engenheiro, que a proveu com uma mansão e uma boa pensão mensal, mas ficou com a guarda dos três filhos. (Parte dessas informações eu tive de pesquisar, pois o filme não nos dá.)
Nessa mesma festa, Angela conhece Raul, então casado com a rica Adelita (Carolina Manica). Os dois se apaixonam, e o filme é feliz em flagrar a química sexual, mas exagera na dose, roubando espaço de contextualizações importantes. Eu contei cinco cenas de sexo, algumas delas embaladas por uma trilha de blues que remete a thrillers eróticos de segunda categoria (ou a videoclipes de hard rock dos anos 1980 e 1990).
É quando deixa o som ambiente imperar que Angela produz mais impacto. O barulho intermitente do mar de Búzios serve como um alerta de que a qualquer hora pode vir uma onda violenta: aos poucos, vão se chocar o caráter possessivo e machista de Raul e a natureza libertária de Angela.
Mas logo adiante a trilha sonora passa a ser mais empregada, logo adiante surgem cenas de sexo gratuitas (como aquela da melhor amiga da protagonista), logo adiante virá um desfecho apressado e incrivelmente ruim.
AVISO DE SPOILER.
Além de relegar para poucas frases nos créditos de encerramento toda a discussão na sociedade e na Justiça que o caso provocou (o slogan "Quem ama não mata" vem desse episódio), o final de Angela tem um momento tão constrangedor que, pasme, pode resultar em humor involuntário numa história sobre feminicídio: quando a protagonista é assassinada, a montagem acrescenta cenas de outras três personagens femininas (sua mãe, sua melhor amiga e Adelita) que "sentem" a sua morte.