Aos 43 anos, Caio Blat passou boa parte de sua vida servindo ao audiovisual e às artes cênicas – são mais de três décadas desde a sua estreia, em 1991, no seriado No Mundo da Lua, da TV Cultura. O artista paulistano, de lá para cá, acumulou diversos trabalhos em novelas, séries, peças, filmes e programas educativos, o que fez com que o rosto e o talento do ator se tornassem conhecidos no país.
Com o passar do tempo, quis se aprofundar ainda mais na profissão e resolveu atuar, também, por trás das câmeras, escrevendo, produzindo e dirigindo – no ano passado, por exemplo, estreou no comando de longa-metragem com O Debate. Agora, Blat dá mais um passo na expansão de sua carreira, integrando o trio de curadores do 51º Festival de Cinema de Gramado, que ocorre de 11 a 19 de agosto. Nesta entrevista, ele fala sobre o evento – de onde já saiu duas vezes premiado –, sua trajetória e os próximos projetos.
Como você recebeu o convite para integrar a curadoria do 51º Festival de Cinema de Gramado?
Foi uma surpresa. Um convite inédito, um trabalho difícil e uma grande responsabilidade. Tinha uma quantidade gigantesca de filmes para assistir, do Brasil todo. E, ao mesmo tempo, achei um desafio maravilhoso, porque, primeiro, iria ter acesso a toda a produção cinematográfica do ano do país. Depois, tem o prazer de poder fazer escolhas, recortes, de preparar uma seleção consistente, porque acho que o que faz um festival forte é uma boa seleção de filmes. Independentemente da produção, do glamour, a importância maior de um festival é mesmo a competição, ter filmes representativos. A gente está saindo de um período de trevas, de um governo que fechou o Ministério da Cultura, que parou a Ancine. Então, tem muita expectativa para as produções que estão saindo agora. Tudo isso me inspirou. Acho que Gramado é o festival mais tradicional do país, é o que tem mais prestígio, que tem uma história mais longa. É muito bom poder ver Gramado voltando a grande forma, com uma grande seleção, com sessões presenciais, pós-pandemia e pós-desgoverno.
Antes de fazer parte da curadoria, qual era a sua relação com o festival?
Estive várias vezes como público, como audiência, aprendendo, ouvindo, vendo filmes maravilhosos. Depois, quando comecei a filmar bastante, voltei com meus filmes em competição e foi sempre muito importante para mim, muito marcante. As duas vezes que eu ganhei (como melhor ator, por Bróder, em 2010, e Uma Longa Viagem, em 2011), foram confirmações muito fortes na minha carreira, muito representativas, assim como as outras vezes em que estive aí apresentando filmes que também ganharam, como o BR-716, do Domingos Oliveira. Agora, como curador, em uma nova posição, me sinto mais maduro selecionando os filmes que vão competir. Enfim, sinto que a minha história conversa com a história do Festival de Gramado.
O Festival completou meio século. E, na apresentação do evento deste ano, foi muito falado sobre futuro. De que forma vocês da curadoria trabalharam para mirar nesta nova era?
A gente procurou modernizar a seleção. O Brasil finalmente está acordando para a importância da representatividade. Então, a gente valorizou muito os filmes com temáticas regionais, indígenas, principalmente os documentários. Tem também uma história de um ídolo preto, o Mussum, além de um filme fortíssimo, Angela, sobre violência contra a mulher. Acho que tudo isso dá um ar de modernidade para Gramado. Outra coisa que me agradou bastante foi a exibição dos episódios de uma produção do streaming, Cangaço Novo. As fronteiras entre o cinema, as séries, o streaming e a televisão estão rompidas, então é legal que o festival reconheça isso. Achei que ter o filme do Kleber (Mendonça Filho), o Retratos Fantasmas, uma obra-prima que acabou de passar em Cannes, na abertura, valoriza muito Gramado. A gente fez uma seleção bem contemporânea, bem forte com um recorte muito importante do audiovisual brasileiro.
Os filmes selecionados conversam de alguma maneira?
Conforme a seleção vai se formando, os filmes vão conversando entre si. A gente tem um documentário muito forte sobre os motoboys durante a pandemia, Da Porta pra Fora. Outra coisa que me agradou muito, surpreendeu, é que a gente tem um filme do Petrus Cariry, que se passa em uma cidade do Ceará que foi alagada e virou um deserto e, em seguida, a gente recebeu um documentário com a história da mesma cidade (respectivamente, Mais Pesado É o Céu e Memórias da Chuva). É muito maravilhoso a gente ter um filme de ficção e um documentário que se passam na mesma cidade, com duas visões diferentes. Os títulos foram criando um diálogo entre si e essa principal temática, que foi a diversidade.
Nos cinemas do país, é comum blockbusters norte-americanos dominando quase todos os espaços, relegando os filmes nacionais a pequenas brechas na programação, atendendo à lei da oferta e da procura. Como fazer o público assistir à produção brasileira?
Acho que tem dois lados. Primeiro, é preciso ter apoio, lançamentos e uma lei de cotas de tela, para preservar o conteúdo nacional. Vários países do mundo fazem isso e fortalece realmente a produção nacional. Por outro lado, os filmes têm que buscar também esse diálogo com grande público. A gente tem que valorizar as comédias que levam bastante gente para os cinemas e que, às vezes, sofrem preconceito. Tanto a produção tem que se diversificar quanto tem de haver políticas de defesa.
Os próprios vencedores do Festival de Cinema de Gramado não encontram, muitas vezes, tanta popularidade.
Sempre que a cultura perde políticas de apoio, é uma vergonha, uma pena
CAIO BLAT
Ator e curador do Festival de Cinema de Gramado
Acho que os festivais acabam dando mais prestígio aos filmes do que popularidade. Se eu perguntar para o pessoal quem ganhou o Festival de Berlim deste ano, por exemplo, acho difícil as pessoas lembrarem. Ou o filme fazer bilheteria por causa disso. Quando eu fui a Cannes, vi que existe uma competição de filmes de arte, mas, ao mesmo tempo, existe um mercado fortíssimo lançando filmes populares. Quando a gente estava lá apresentando Carandiru na competição, todo o aparato comercial da Columbia Pictures estava dedicado ao lançamento de um O Exterminador do Futuro. Eu não imaginei que em Cannes se lançava O Exterminador do Futuro. Em Gramado, tentamos juntar as duas coisas. Fizemos uma seleção trazendo filmes bem específicos, fortes, regionais, e trazendo também grandes estrelas, como Ísis Valverde, filmes populares, como o do Mussum, com o Ailton Graça. Buscamos um equilíbrio.
Como está o cinema nacional, após um período que somou a quase vilanização da cultura com a pandemia?
A gente passou por um período de seca, com muitos investimentos que foram atrasados. Existe uma demanda muito atrasada, com filmes que estão prontos, esperando o lançamento. É por isso que os festivais estão tendo 500, 600 filmes inscritos. A gente está na expectativa de que a nova política comece a fazer efeito, que sejam liberados os editais, que seja liberada a Lei Paulo Gustavo e que a gente tenha uma nova safra fortíssima de produção, com um apoio de um tamanho inédito, que já foi anunciado e que vai ser liberado logo mais. Acho que vai dar uma grande energizada no audiovisual brasileiro, que vai colocar em movimento todo o mercado e, nos próximos anos, vamos ter uma explosão de criatividade.
E como enxerga essa persistência da arte, que sobrevive às mais diferentes adversidades?
A cultura é sempre resistência, ela conta a história de um povo. É a nossa luta contra a mercantilização de tudo, contra a homogeneização de tudo. Cultura é o que nos dá identidade, é o que nos torna especiais diante de outros países.
Este ano, o Festival de Gramado será realizado sem o apoio da Lei de Incentivo à Cultura (LIC) do Estado, por conta de mudanças no critério de seleção de projetos. Como você vê isso?
Sempre que a cultura perde políticas de apoio, é uma vergonha, uma pena. Muitas vezes, é o único evento do ano para aquela região. Mas o Festival de Gramado tem muita tradição, muita força e conseguiu se sustentar com todos os apoios, com a autarquia, com outros apoiadores e vai acontecer de forma muito forte, muito brilhante.
Mas como não correr riscos? Como fortalecer a relação entre os eventos culturais e o poder público?
O público tem que exigir e conscientizar os políticos e os empresários de que eles têm que investir socialmente, investir em cultura. A própria Petrobras, que durante muitos anos aportou, retirou seus apoios, mas agora está prometendo voltar com todos os incentivos ao cinema. Acho que tem que ser um esforço da sociedade toda. E o público tem de comparecer em peso, comprar ingressos, exigir uma programação boa.
O Festival de Gramado deste ano ocorre em meio a uma grande greve em Hollywood, com os artistas e roteiristas reivindicando melhores condições de trabalho e valorização. Por aqui, como está a situação?
Tem uma questão urgente. Precisamos de uma lei de direitos autorais e de direitos conexos. As produções antes eram feitas para televisão, o ator recebia para participar da gravação e aquilo passava uma vez só. Agora, com a internet, os filmes e as séries ficam disponíveis por anos, para assinantes, com publicidade e tal. A gente precisa urgentemente de uma lei de direitos conexos, em que os atores recebam pela exibição de filmes que fizeram no passado. Há filmes que fiz anos atrás, recebi uma verba baixa, porque eram de baixo orçamento, e que, hoje, estão disponíveis para assinantes no streaming. A gente esteve recentemente em Brasília, no Congresso, com a Gloria Pires, com todo o pessoal da Interartis, que luta pelos direitos autorais e direitos conexos de atores. Pressionando o Congresso a modernizar a nossa legislação, porque a natureza do nosso trabalho mudou. A nossa legislação está bastante ultrapassada e precisamos discutir esse momento novo da internet, dos streamings, do digital, da inteligência artificial, dos direitos sobre a imagem.
Por falar nisso, a presença da inteligência artificial está cada vez mais integrada ao audiovisual. Este movimento não ameaça os artistas?
A tecnologia é sempre bem-vinda, sempre tem novidades, novos métodos. Acho que muita coisa pode se modernizar, dá para fazer cenários virtuais, dá para fazer muita coisa diferente. Mas eu acho que o humano sempre vai ser insuperável. A experiência da atuação, a parte artesanal do cinema sempre vai estar preservada. Tem que ser uma combinação das duas coisas. A gente passou por isso, por exemplo, quando começou a sumir o negativo. A gente filmava muito em película, eu fiz muitos filmes em película e, de repente, a película foi sumindo. Algumas pessoas tinham preconceito, falavam que o digital não tinha a mesma qualidade da película, não tinha a mesma textura e tal, mas isso é uma grande besteira. Hoje em dia, você tem todas as texturas possíveis com a câmera digital, ficou muito mais leve e democratizou a produção. A película era difícil e caríssima e, de repente, qualquer um podia ter uma câmera digital e filmar. A tecnologia democratiza os meios de produção, mas o artesanal, a ideia de um bom texto, uma boa atuação, vai ser artesanal e sempre vai ser preservada.
Atualmente, vemos mudanças nas emissoras de televisão, principalmente na TV Globo, com os artistas sendo contratados por obras, ao contrário dos contratos fixos de outrora. Como a classe artística recebe estas alterações?
Elas vieram para modernizar as relações. Acho que isso já era assim no mundo inteiro. Contratos longos já não existem há muito tempo lá fora. Isso abre as perspectivas e a Globo, por exemplo, vai continuar sendo uma grande produtora e o tempo inteiro vai precisar de um número grande de artistas com talento e com popularidade para conseguir manter a sua audiência. Ao mesmo tempo, a gente tem um mercado mais aberto hoje, com várias produtoras, vários exibidores. Eu mesmo estou encerrando uma história de 25 anos na Globo agora. Sempre estive contratado, com estabilidade, realizei incontáveis projetos lá, tenho uma gratidão enorme. Agora, estou indo fazer uma série na HBO, Beleza Fatal. E é uma experiência nova, me deixa entusiasmado, é uma turma que está muito animada, que quer fazer algo mais moderno, com 40 episódios. Normalmente, a gente fazia aquelas novelas de 200 episódios, que acabavam tendo uma barriga. Acho que a modernização dos veículos, dos meios de comunicação, vai trazer a modernização dos formatos também, abrindo o mercado, e quem tiver coragem, ousadia e talento, vai se destacar.
O Brasil precisa conhecer o Brasil, a gente precisa conhecer as histórias da Amazônia, as histórias dos pampas.
CAIO BLAT
Ator e curador do Festival de Cinema de Gramado
Também dentro do cenário de mudanças, vemos produções vindas de diversas partes do país. aliás, o grande vencedor de Gramado em 2022, noites alienígenas, veio do acre. Como você enxerga esta descentralização?
É importantíssimo. O Brasil precisa conhecer o Brasil, a gente precisa conhecer as histórias da Amazônia, as histórias dos pampas. Pela primeira vez, a diversidade e a representatividade estão sendo respeitadas. A gente está vendo muitas histórias com protagonistas pretos, indígenas, gays, trans. E está crescendo o número de diretoras e autoras mulheres.
Você já atuou nas mais diversas frentes do audiovisual, seja em novelas, séries e filmes e, no ano passado, assumiu como diretor de longa-metragem pela primeira vez com O Debate. Como estas experiências agregaram na sua construção como artista?
Acho que a gente vai crescendo, vai aprendendo muito, trabalhando com vários diretores diferentes, visitando vários festivais, mostrando nossos filmes, a gente vai ouvindo sobre cinema, discutindo, percebendo o panorama e maturando um olhar, uma opinião, um jeito de fazer. Eu já estava doido para dirigir, com muitas ideias. Eu fico muito feliz que eu tenha estreado como diretor na mesma época em que o Wagner (Moura) estreou o Marighella e que o Lázaro (Ramos) estreou o Medida Provisória. Acho que é uma geração toda de atores que está amadurecendo e assumindo o comando, assumindo a direção, assumindo a produção de projetos. É um processo natural.
Como foi trabalhar com o seu sogro, Guel Arraes, e com o Jorge Furtado neste projeto?
O Jorge e o Guel são mestres com os quais eu já vinha trabalhando. Eu fiz dois longas com o Guel e, recentemente, a gente fez o Grande Sertão: Veredas, que ainda vai ser lançado. E a gente teve uma relação muito próxima, eu como protagonista e a gente debatendo todos os aspectos do filme, como roteiro, formas de filmar e ele foi vendo a minha vontade, minha maturidade para dirigir. E o Jorge também. O primeiro especial que eu dirigi na Globo, que foi na pandemia, o Amor e Sorte, foi ele que que escreveu o roteiro junto com a gente e acompanhou a minha primeira direção como autor. Então, são dois mestres que estavam acompanhando o meu desenvolvimento e foram eles que me convidaram para dirigir. Eles tinham escrito a peça e, depois, rapidamente adaptaram para um roteiro de cinema. Quando me convidaram, deram na minha mão e eu reescrevi o roteiro do ponto de vista da direção. Foi um processo coletivo.
E vocês todos voltam a trabalhar juntos em Grande Sertão: Veredas, certo? Fale um pouquinho sobre esse longa baseado na obra de Guimarães Rosa, com roteiro do Jorge e do Guel, que também dirigirá o título.
O Grande Sertão foi filmado antes de O Debate. E eu acho que é um filme gigantesco, uma obra fundamental da nossa literatura e que dois mestres tiveram a coragem de adaptar, de transpor para um Brasil atual. Na verdade, ele é meio distópico, meio futurista. E tiveram a coragem de transpor a luta do sertão para um cenário urbano, das grandes comunidades, das grandes favelas, dos conflitos urbanos. É uma obra clássica que está totalmente modernizada, uma versão muito ousada e é um projeto gigantesco. Com certeza, é o trabalho mais importante da minha vida como ator e eu estou com uma expectativa bem grande para o lançamento, no começo do ano que vem.