"A escolha de Marte Um para representar o Brasil no Oscar 2023 foi uma decisão democrática e importante do júri. O filme trata de afeto e de esperança, da possibilidade de seguir sonhando em meio a tantas dificuldades econômicas e políticas. Sintetiza bem o cinema brasileiro, com qualidade narrativa e técnica, representando a diversidade do país."
Assino embaixo das palavras de Bárbara Cariry, presidente da comissão de seleção da Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais, que anunciou na manhã desta segunda-feira (5) sua decisão. Também disputavam a vaga Carvão, de Carolina Markowicz (que foi o principal rival, segundo informações de bastidores), A Mãe, de Cristiano Burlan, Pacificado, de Paxton Winters, Paloma, de Marcelo Gomes, e A Viagem de Pedro, de Laís Bodanzky.
Escrito e dirigido pelo mineiro Gabriel Martins, Marte Um tem potencial para recolocar o Brasil na premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. A lista prévia da categoria de melhor filme internacional será divulgada em 21 de dezembro, com 15 semifinalistas. O anúncio dos cinco indicados ocorre em 24 de janeiro de 2023, e a 95ª cerimônia do Oscar está marcada para o dia 12 de março, no Dolby Theatre, em Los Angeles. O país não briga por essa estatueta dourada desde 1999, quando Central do Brasil foi um dos títulos superados pelo fenômeno italiano A Vida É Bela.
No 50º Festival de Cinema de Gramado, Marte Um conquistou quatro Kikitos: melhor roteiro, trilha musical (Daniel Simitan), o Prêmio Especial do Júri (justamente "pelo afeto que se vê na tela") e o troféu do júri popular. Em Porto Alegre, o filme está em cartaz apenas no CineBancários (às 17h, exceto nesta segunda-feira, dia em que a sala não abre; a partir de 8/9, será às 14h45min) e no Espaço Bourbon Country (às 16h). É um pecado para com uma obra que deveria ter a maior visibilidade possível, dada sua capacidade de comunicação e dado seu retrato de um Brasil tão cotidiano.
Sua exibição no Palácio dos Festivais, em Gramado, provocou um funga-funga como há muito tempo eu não ouvia em uma sala de cinema. Ao acender das luzes, uma longa fila se formou na plateia para cumprimentar Gabriel Martins e os quatro atores principais: Rejane Faria, Carlos Francisco, Camilla Damião e Cícero Lucas.
Lançado mundialmente no Festival de Sundance (EUA), em janeiro, este é o primeiro longa-metragem solo de Martins, 34 anos (em 2019, codirigiu com Maurílio Martins No Coração do Mundo, e seu currículo inclui o curta Nada, de 2017, exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes). Ao apresentar o filme, em que atua como diretor, roteirista, coeditor e coprodutor, ele disse:
— Sou um homem negro e periférico. Como os produtores e os atores deste filme em que a gente pode contar sobre nossas experiências. Façamos um brinde ao futuro. Que o cinema negro e o cinema periférico possam prosperar.
Divulgado como "um filme sobre sonhos e estrelas", segundo a sinopse oficial, Marte Um começa em 28 de outubro de 2018. Enquanto um telejornal anuncia a eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência e fogos de artifício e gritos de guerra ecoam nas ruas, um menino negro, Deivid (Cícero Lucas), mira o céu.
Estamos em Contagem, o terceiro município mais populoso (673,8 mil habitantes) de Minas Gerais, situado na região metropolitana de Belo Horizonte. Deivid, o Deivizinho, é filho de Wellington (Carlos Francisco, o Damiano de Bacurau) e de Tércia (Rejane Faria, a Néia da segunda temporada da série Segunda Chamada) e irmão caçula de Eunice, a Nina (Camilla Damião, egressa do teatro).
Essa família, batizada com o mesmo sobrenome do diretor (que evoca sonoramente Marte), vai tendo suas personalidades e seus conflitos apresentados sem pressa, mas com foco. Deivizinho é um craque do futebol de várzea, mas sonha em ser astrofísico, como o estadunidense Neil DeGrasse Tyson, e participar de uma missão — referida no título — que em 2030 pretende iniciar a colonização do planeta vermelho.
Wellington, porteiro em um condomínio de classe alta, se orgulha de estar há quatro anos sem beber e sonha com o ingresso do filho no seu time de coração, o Cruzeiro. O pai vê essa chance crescer quando um ídolo cruzeirense, o ex-jogador argentino Juan Pablo Sorín (vivido por ele próprio), se muda para o edifício onde trabalha.
O sonho de Nina é alugar um apartamento para ir morar com a namorada, Joana (Ana Hilário). A cena na qual as duas se conhecem, em uma boate, é uma das mais bonitas e sensuais do cinema brasileiro em 2022, assim como a cena em que os pais descobrem a sexualidade da filha é uma das mais delicadas e engraçadas da temporada.
Faxineira em casas como a do anão humorista Tokinho (no papel dele mesmo), Tércia, por sua vez, não sonha: tem pesadelos e sofre de insônia desde que foi vítima de uma pegadinha de mau gosto em uma lanchonete.
À medida que as jornadas convergem e os personagens divergem, o que começara em tom de comédia dramática passa a roçar na tragédia — a ponto de o pai, a certa altura, dizer: "A gente se fodeu, família!".
Mas Marte Um, vale repetir, é um filme sobre sonhos e estrelas. Um filme sobre esperança e otimismo, um filme que alumia a alma. Brilhou naquela noite de Gramado graças à simbiose entre Gabriel Martins, os atores e a equipe técnica.
Uma das opções mais felizes do diretor foi a de filmar planos longos e evitar ao máximo os cortes — no Palácio dos Festivais, ele me disse que, durante a produção, várias vezes orientou o diretor de fotografia Leonardo Feliciano a assumir o risco de não fazer contraplanos (ou seja, mostrar por outro ângulo um diálogo, por exemplo). Essa decisão demonstra a confiança e o carinho de Martins para com o elenco. E, combinada à autenticidade do design de produção assinado por Rimenna Procópio e dos figurinos elaborados por Marina Sandim, ajuda a tornar Marte Um um filme tão imersivo e tão naturalista: parece que estamos juntos aos personagens, parece que esses personagens são gente de verdade.
Uma família de verdade. Que vai brigar e ter perrengues, mas que se ama e se cuida. Talvez a cena que melhor simbolize isso seja a da cadeira. Sempre que penso nela, me arrepio e fico com os olhos marejados por lembrar daquele abraço pelas costas.