O Festival de Gramado celebra o cinema e, por extensão, a arte como um todo. No dia da abertura da sua 50ª edição, contudo, protocolos e atrasos provocaram o encolhimento e o esvaziamento das expressões artísticas.
A sexta-feira (12) marcou a retomada do presencial do Festival de Gramado, após duas edições (2020 e 2021) virtuais por causa da pandemia de coronavírus. O reencontro da cidade com o seu mais tradicional evento — e a segunda mais antiga competição cinematográfica do Brasil (a primeira é a de Brasília, instituída em 1965) — foi enfatizado nos discursos proferidos durante a tarde na Rua Coberta, bem em frente ao Palácio dos Festivais. Mas havia tanta gente para falar (autoridades, organizadores, ex-organizadores etc.), e por tanto tempo, que o concerto de abertura precisou ser encurtado. Sob regência do maestro Bernardo Grings, a Orquestra Sinfônica de Gramado apresentou duas músicas a menos em relação ao repertório previamente divulgado.
Mesmo assim, o excesso de protocolo se refletiu na programação do Palácio dos Festivais. Marcada para começar às 18h, só teve início quando já passava das 19h. Era de se esperar que, em uma edição tão especial, o cerimonial se alongasse no palco, mas minutos preciosos foram gastos, por exemplo, com a repetição, pelas apresentadoras Marla Martins e Renata Boldrini, da lista de realizadores, patrocinadores, apoiadores e afins que haviam acabado de ser citados e identificados em um vídeo no telão.
Os primeiros filmes exibidos foram o curta-metragem O Fim da Imagem (PR), de Gil Baroni, e o longa A Mãe (SP), dirigido por Cristiano Burlan, porto-alegrense radicado em São Paulo que completa 47 anos no dia 21. No curta, dois adolescentes (interpretados por Talita Mendes e Gustavo Eckel) realizam um vídeo para lidar com o bullying na escola e depois acessam uma fictícia rede social chamada Opaco que promove a "eutanásia virtual", o apagamento de todos os rastros digitais. Achei o tema pertinente, mas a história, confusa, mais sensorial do que contundente.
Em A Mãe (que ainda não tem data de estreia comercial), Burlan complementa a Trilogia do Luto. No média-metragem Construção (2006), ele homenageou seu pai, pedreiro. Em Mataram meu Irmão (2013), ele relembra o assassinato de seu irmão, em 2001, fazendo um retrato da violência nos subúrbios da capital paulista. No documentário Elegia de um Crime (2018), o diretor reconstitui outra tragédia familiar: sua mãe foi vítima de feminicídio, em 2011.
Agora, o cineasta conta uma ficção que tem muito de realidade — incluindo a participação especial de Débora Silva, fundadora do movimento Mães de Maio, surgido em 2006, quando seu filho, Edson Rogério, negro e pobre que trabalhava como gari na Baixada Santista, foi tido como suspeito pela Polícia Militar, liberado após averiguação de documentos e, na sequência, executado. Débora subiu ao palco do Palácio dos Festivais, e suas palavras emocionaram muita gente (Renata Boldrini estava em lágrimas ao retomar a apresentação):
— Não é para uma mãe enterrar um filho.
A protagonista da trama é vivida por Marcelia Cartaxo, ganhadora do Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim por A Hora da Estrela (1985) e do Kikito em Gramado da categoria por Pacarrete (2019). Mãe solo, Maria vive no Jardim Romano com o filho adolescente, Valdo, um craque do rap ("Sou um soldado romano / Com a mão no mic e não no cano") encarnado por Dunstin Farias, nascido e criado na mesma comunidade. De repente, o rapaz some, e aí começa a odisseia de Maria, que vai buscar informações tanto com um bandido do bairro quanto com a polícia.
A sinopse pode dar a entender um filme agitado, pleno de momentos de tensão. Mas Burlan vai na contramão. As cenas são contemplativas, a câmera demora-se em na paisagem natural, no casario ou em objetos como uma panela no fogão. O objetivo parece ser duplo. Por um lado, desmistificar a vida na periferia, um lugar onde moram pessoas como todas as outras — Maria é todas as mães. Por outro, ilustrar como a violência policial já virou cotidiana ("A ditadura não acabou. Só vai acabar com o fim da PM, que é muito presente nas favelas e nas periferias", afirma a personagem de Débora Silva). Mas o ritmo adotado em A Mãe torna-se vagaroso em excesso, a ponto de seus 90 minutos de duração parecerem mais. E o desfecho vai além do necessário — talvez pudesse terminar naquela sequência filmada de dentro de uma viatura, que, com a luz intermitente revelando transeuntes nas ruas e calçadas, é potente em comunicar o medo provocado pela presença da Polícia Militar. E o que vem a seguir gerou em alguns colegas jornalistas perguntas sobre a lógica narrativa.
Depois desses dois filmes e de um intervalo, houve a entrega do prêmio Cidade de Gramado para a atriz Araci Esteves, que viveu uma outra mãe guerreira como a protagonista de um clássico do cinema gaúcho que está completando 25 anos: Anahy de las Misiones (1997). A distinção foi conduzida pela atriz Dira Paes, colega de elenco no épico ambientado na época da Revolução Farroupilha e, em 2022, estreante na curadoria do Festival de Gramado. Por coincidência ou não, o troféu Oscarito, neste sábado (13), vai para as mãos de mais um ator presente em Anahy, Marcos Palmeira. E na segunda (15), será dia de lembrar os 10 anos da morte do diretor do longa-metragem, Sérgio Silva.
Terminada a homenagem a Araci, o Palácio dos Festivais exibiu os dois melhores títulos da noite: o curta Deus Não Deixa (RJ), de Marçal Vianna, e o longa La Pampa, do peruano Dorian Fernández-Moris. O primeiro é um documentário sobre Miguel, sujeito dividido entre se aceitar e ser aceito. Tempos atrás, ele se apresentava como Mika Sapequinha; depois, raspou os cabelos, abandonou as roupas femininas e decidiu abraçar Jesus Cristo. Mas a que preço?
Em La Pampa, ficção que tem a Amazônia peruana como cenário, acompanhamos o encontro de dois personagens em fuga: Pedro (Fernando Bacilio, desde já um candidato ao Kikito de melhor ator entre os longas estrangeiros), na casa dos 50 e tantos anos, e a jovenzinha Reina (Luz Pinedo). Não sabemos exatamente do que ele está fugindo, só aos poucos flashbacks revelam. Mas de cara sabemos do que ela tenta escapar: da prostituição forçada nos campos controlados pela máfia da mineração do ouro. A direção de fotografia de Andrés Magallanes e a música composta por Tomás Vidal fazem um casamento vistoso, ora realçando a tensão das situações, ora investindo na melancolia, ora adotando um tom esperançoso.
Pena que pouca gente viu esses dois títulos.
É que, no meio da programação, várias poltronas ficaram vazias. Em parte pelo adiantado da hora (o último filme terminou depois da meia-noite), em parte porque 80% dos lugares estavam ocupados por convidados, como os da Gramadotur, que não são necessariamente aficionados por cinema (estes podem, pelo menos, aproveitar as sessões gratuitas dos longas, realizadas nas manhãs seguintes à competição, a partir das 9h, no Teatro Elisabeth Rosenfeld). Ou seja: Gramado é um festival de cinema, mas que por vezes desvaloriza os filmes e desprestigia as equipes de trabalho: se as turmas de O Fim da Imagem e A Mãe falaram diante de uma plateia cheia, o cenário foi bem diferente para as de Deus Não Deixa e La Pampa.