Há cinco décadas, ininterruptamente, uma cidade da serra gaúcha se transforma na capital do cinema brasileiro. Exibe filmes, recebe cineastas e celebridades, provoca histeria ao redor do tapete vermelho e é palco de debates contundentes. E distribui uma simpática estatueta sorridente, o Kikito, deus do bom humor.
Pode não ter uma praia que nem Cannes ou palácios como os de Veneza, mas tem hortênsias, chocolates e os pedalinhos no Lago Negro. Tem charme e relevância. Não é à toa que o Festival de Cinema de Gramado chega à 50ª edição, que será realizada entre 12 e 20 de agosto.
Tudo começou no verão de 1973, quando o primeiro festival foi realizado de 10 a 14 de janeiro, consagrando Toda Nudez Será Castigada, de Arnaldo Jabor, como o grande vencedor. Era outra Gramado, ainda sem tantos hotéis e o apelo turístico indelével que o município hoje possui. De lá para cá, a cidade se entrelaçou com a história do audiovisual no Brasil.
Foi o festival que pôs na vitrine Vai Trabalhar, Vagabundo (1974), de Hugo Carvana, o campeão de bilheteria Dona Flor e Seus Dois Maridos (1977), de Bruno Barreto, Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia (1978), de Hector Babenco, Edifício Master (2001), de Eduardo Coutinho, O Som ao Redor (2012), de Kleber Mendonça Filho — cineasta que voltaria ao festival para realizar a estreia nacional dos badalados Aquarius (2016) e Bacurau (2019), sempre fora de concurso.
A crítica de cinema Maria do Rosário Caetano, que frequenta o evento desde 1979, aponta que ele tem sido substancial para jogar luz sobre os filmes brasileiros.
— Gramado ainda tem essa aura e esse papel de chamar atenção para o cinema do país. É uma caixa de ressonância. É o festival que mais recebe mídia no Brasil. Que aparece na televisão, que aparece no imaginário do povo brasileiro. Para muitas pessoas, Gramado é sinônimo de festival — analisa.
Ivonete Pinto, crítica e professora na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), corrobora. Ela frisa que Gramado é um catalizador para a divulgação dos filmes, já que costuma atrair turistas e ter uma cobertura expressiva da imprensa.
— Muitos cineastas ficam felizes em ter suas obras selecionadas porque, independentemente de serem premiados ou não, vão sair com uma importante repercussão — diz.
Atualmente, três curadores são responsáveis pela seleção dos longas-metragens brasileiros, latino-americanos e documentais que integram o festival: a atriz Dira Paes, a atriz e cantora argentina Soledad Villamil e o jornalista Marcos Santuario. Costumeiramente, há uma ênfase maior em projetos autorais entre os filmes selecionados. Foi assim especialmente entre 2006 e 2011, quando o crítico José Carlos Avellar e o cineasta Sérgio Sanz eram os curadores. Porém, da última década para cá, houve uma busca maior por diversidade e pluralidade, como atesta Santuario. O curador afirma que há um olhar maior para a globalização, além da cadeia produtiva do mercado.
— Antes havia muito filme umbilical, que dialogava com uma parte da crítica, mas que, eventualmente, tinha dificuldade de alcançar um mercado maior. Sempre trabalhamos com um olhar na arte e outro no universo da distribuição. Para acompanhar todo o processo da cadeia criativa do audiovisual: produzir, mas também chegar ao público — explica Santuario.
Internacionalização
Além de palco para o cinema brasileiro, o evento também se posiciona como um festival iberoamericano. Essa internacionalização teve início oficialmente na edição de 1992, motivada pela extinção da Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima (Embrafilme), que fomentava a produção e a difusão do cinema no país. A estatal teve seu fim no governo Fernando Collor, em 1990, o que interrompeu totalmente e atrasou em anos a produção cinematográfica nacional.
Com poucos filmes brasileiros sendo lançados, a solução para Gramado foi abrir-se aos longas estrangeiros. Foi nessa época que o município passou a receber cineastas, atores e atrizes de diferentes rincões.
Por exemplo, o ator italiano Salvatore Cascio, que viveu o garoto Totó em Cinema Paradiso (1988), veio a Gramado em 1993. No mesmo ano, a atriz mexicana Claudette Mailé reproduziu para os fotógrafos locais a cena em que aparecia nua sobre um cavalo em Como Água para Chocolate.
Em 1994, foi o cineasta italiano Michelangelo Antonioni (Blow-Up e A Noite) vir à Serra. Entre outras estrelas, vale destacar que divas como a americana Faye Dunaway (Bonnie & Clyde e Chinatown) e a italiana Gina Lollobrigida (Quando Setembro Vier e Noites de Amor, Dias de Confusão) também marcaram presença.
A partir da retomada do cinema brasileiro, os filmes nacionais voltariam a ganhar protagonismo no festival, o que se consolidou novamente nos anos 2000.
Cinema gaúcho
Além de ser uma tela vistosa para filmes brasileiros e estrangeiros, Gramado também é um importante propulsor para o cinema produzido no Rio Grande do Sul. A partir dos anos 1980, o festival passou a projetar uma importante geração de cineastas gaúchos, que levariam o Estado a ser um dos principais polos audiovisuais do país. Hoje o evento conta com mostras competitivas tanto para curtas quanto para longas gaúchos.
Um dos momentos essenciais para esse estímulo foi em 1981, com Deu Pra Ti Anos 70, de Giba Assis Brasil e Nelson Nadotti. Exibido na mostra de Super-8, o longa foi uma das sensações daquele ano e inspirou uma geração de cineastas do Estado. Nesse período, o formato Super-8 fomentava a produção de jovens gaúchos.
Foi nos anos 1980 que o festival ajudou a projetar cineastas como — além dos já citados Assis Brasil e Nadotti — Carlos Gerbase, Jorge Furtado, Ana Luiza Azevedo, Otto Guerra, entre outros, além de atores e atrizes como Luciene Adami, Marco Breda e Werner Schünemann. Segundo Schünemann, o festival era uma referência para aqueles trabalhos então emergentes. Gramado era o objetivo a ser alcançado.
— De alguma forma, fazíamos filmes para o festival. Talvez isso aconteça um pouco, ainda, com as produções locais, que mantêm o festival como uma porta de entrega — opina o ator e cineasta. — Acho que o Estado não teria esse mercado forte hoje, empregador e produtor, se não fosse Gramado.
Furtado ratifica: os filmes eram feitos para ficarem prontos a tempo de serem exibidos em Gramado.
— A única moviola (equipamento de montagem) que se tinha ficava completamente ocupada no prazo de deixar pronto para o festival — recorda Furtado. — Todo mundo que começou a fazer cinema porto-alegrense nos anos 1980 visava Gramado. Era uma referência, um lugar onde a gente sabia que podia mostrar nossos filmes.
Uma das obras que marcaram essa fase é Verdes Anos, de Gerbase e Assis Brasil, em 1984, que recebeu o Prêmio Revelação. Mas nada naquela década impactou mais do que o curta Ilha das Flores, de Furtado, em 1989.
Até aquele ano, o cineasta já tinha exibido filmes no festival como Temporal (1984, codirigido com José Pedro Goulart), O Dia em que Dorival Enfrentou a Guarda (1986, repetindo a parceria com Goulart) e Barbosa (1988, com Ana Luiza Azevedo). A sessão de Ilha das Flores foi apoteótica, com mais de 10 minutos de aplausos e ovações.
O curta se tornaria um marco no cinema brasileiro e, no ano seguinte, seria consagrado com o Urso de Prata no Festival de Berlim.
— Foi uma das maiores emoções da minha vida. Um curta-metragem sendo tão aplaudido, por tanto tempo, é algo que eu nunca tinha visto. Um curta ser a estrela de um festival é algo muito raro — relata Maria do Rosário Caetano.
Para Furtado, a aclamação foi surpreendente:
— Era um momento de polarização política grande, por conta das eleições de 1989. E o curta provocou uma reação muito forte da plateia. Foi a primeira exibição do filme, não tínhamos ideia do que aconteceria. Só tínhamos visto uma vez no Cine Victoria, em uma projeção de copião. Ainda havia um problema no projetor do cinema, passou meio rápido demais. Foi estranho. Era bem precário. Em Gramado, Ilha foi exibido em uma sala lotada e foi uma explosão. Bem mais do que a gente imaginava.
Nas décadas seguintes, novas gerações de cineastas do Estado ganhariam vitrine com o festival, primeiro com Gustavo Spolidoro, Gilson Vargas, entre outros, depois com, por exemplo, Emiliano Cunha e Iuli Gerbase.
Palco para debates
Desde o início, Gramado também serviu como tribuna de debates da comunidade cinematográfica, tão ou mais significativos do que os próprios filmes. Na década de 1970, era um palco da resistência no qual se lançavam obras e manifestos. Naqueles anos de chumbo, com a ditadura atuando de forma mais vigilante com o Festival de Cinema de Brasília, o evento gaúcho assumiu o protagonismo das discussões na época.
De acordo com Santuario, quem exibe filme em Gramado não quer somente a tela de projeção, mas também o debate que se produz a partir da obra.
— Grande parte da cadeia produtiva do audiovisual brasileiro começou a ver em Gramado a possibilidade de espaço de discussões. Isso veio evoluindo com a sociedade. Os debates têm essa tradição, e continuam tendo — garante o curador.
Tradicionalmente, os debates de Gramado podem ser impulsionados por perguntas firmes e contundentes tanto de jornalistas quanto do público. Muitas discussões em Gramado esquentam. Um dos exemplos mais notáveis foi com Pra Frente Brasil, de Roberto Farias, em 1982. Consagrado no festival daquele ano, o filme teve sua exibição proibida pela censura da ditadura militar — no longa, o protagonista é torturado pelos militares durante os jogos da Copa do Mundo de 1970. Na ocasião, o filme gerou um dos debates mais inflamados das 49 edições.
Maria do Rosário Caetano lembra que Rio Babilônia, de Neville D’Almeida, em 1983, também provocou uma discussão fervorosa. Ela descreve o filme como um diálogo de A Doce Vida, de Federico Fellini, com a pornochanchada.
— O festival foi abaixo. A plateia foi para comer o fígado do diretor no debate. Ele xingava as pessoas: “Vocês são moralistas! São uns reprimidos! Não entendem que eu sou um libertário!”. A plateia enfrentava Neville, e ele revidava. O chão tremia — descreve.
Schünemann recorda de debates com pessoas gritando, além de grupinhos se ameaçando ir às vias de fato:
— Havia sempre um pessoal que se incomoda muito quando tem alguma cena de casal transando. Também havia debates envolvendo a situação política do país e do mundo. Além disso, as questões estéticas rendiam discussões acaloradas.
Hoje, no entanto, para Maria do Rosário, os debates se transformaram praticamente em entrevistas coletivas de imprensa, já que a maior parte das intervenções são feitas por jornalistas que buscam informações sobre as produções.
— Acho que o país está vivendo um momento complicado. As pessoas não querem discutir, desagradar umas às outras, há um politicamente correto pautando os encontros. Não há clima igual ao que ocorreu com Neville. O país está incivilizado, e nosso meio cultural me parece traumatizado com esse estado das coisas. As pessoas vão aos debates para elogiar. É raro ver uma pessoa que destoe do coro. É muita pergunta elogiosa, ou jornalista iniciando debate dizendo que filme é maravilhoso. É o tempo em que vivemos — reflete.
Por outro lado, Schünemann ressalta que os debates do Festival de Gramado sempre foram temidos:
— Ainda que se diga “não, agora não é mais assim”, há quem não inscreva seu filme no festival por medo do debate. As discussões em Gramado são muito aguerridas. Poderia se fazer um paralelo com a crônica esportiva gaúcha, que cai pesado algumas vezes, e algumas pessoas não aguentam. Mas acho que o festival é mais pesado ainda. Os debates são muito livres, ninguém se controla para falar. Muito antes das redes sociais, as pessoas chegavam lá e diziam suas opiniões de uma forma constrangedoramente franca. Já vi representante de filme chorando ou aos berros, uns xingando os outros. Acho legal que tenha essa lenda em torno dos debates de Gramado.
Mas não é só nos debates que o clima esquenta ou as manifestações ocorrem. Podem surgir no palco do Palácio dos Festivais. É só lembrar que, em 2016, o então ministro da cultura do governo de Michel Temer, Marcelo Calero, foi vaiado e chamado de “golpista” por parte dos presentes.
Já em 2019 houve um episódio lamentável no dia da cerimônia do festival: diretores e produtores participantes atravessaram o tapete vermelho em direção ao Palácio dos Festivais realizando um protesto a declarações e medidas de Jair Bolsonaro que atingiram a produção de cinema do país, entre as quais a suspensão de um edital para TVs públicas. Só que o público que que lotava os bares e cafés da Rua Coberta, entorno do tapete vermelho, respondeu com palavras de ordem e até arremessando pedras de gelo.
O glamour
Além de filmes e debates, Gramado costuma ser associado ao glamour. É comum ver estrelas de cinema ou celebridades (instantâneas ou não) desfilarem pelo tapete vermelho, atraindo flashes e gritos histéricos do público.
Em seus primórdios, o festival era realizado no verão (mudou gradativamente nos anos 1980) e recebia as chamadas “starlets”, que posavam para ensaios seminus nas piscinas dos hotéis ou em frente às hortênsias características da época. Mais tarde, houve até uma Villa de Caras, que abrigava celebridades. A leitura do evento é que a presença de artistas na cidade ajuda a difundir o nome de Gramado, o que, consequentemente, incrementa o turismo.
No entanto, uma discussão que sempre rondou o festival foi a dicotomia entre o cinema autoral versus investimento no turismo e no glamour.
— O perfil do festival nunca foi de virar um evento predominantemente autoral — analisa Ivonete Pinto. — Quando se ensaiava um pouco mais esse caminho, houve uma reclamação da cidade. Os comerciantes reclamaram que não havia artistas conhecidos, o que não atraia turistas e não resultava em vendas.
Ivonete lembra que o festival nasceu como uma demanda comercial – uma nova frente para atrair público ao município além da já tradicional Festa das Hortênsias. Ela acrescenta que não foi um “impulso de investir no cinema brasileiro”.
— É um evento, em sua origem, para atrair turistas. E nunca se desvencilhou dessa ideia original. Particularmente, não vejo problema nisso. Que bom que escolheram o cinema para isso. Poderia ter sido outra coisa — assinala.
Para Maria do Rosário Caetano, o festival tem um denominador comum, que, apesar das diferentes curadorias ao longo das décadas, nunca mudou. É um festival que soma o cinema com o espetáculo:
— Há o diálogo com o grande público. Gramado não esconde isso. Desde que haja bons e filmes, acontecimentos cinematográficos polêmicos, desde que haja tudo isso, eu não tenho nada contra o mundanismo. Desde que o cinema não fique em segundo plano. E acho que Gramado tem sabido equilibrar essas duas coisas.
Números por trás do Festival
De qualquer maneira, o festival foi definitivo na projeção de Gramado como cidade turística, como destaca Rosa Helena Volk, secretária de turismo e presidente da Gramadotur, autarquia de turismo e cultura ligada à prefeitura e responsável pela organização dos grandes eventos locais.
— Foi o primeiro grande evento que Gramado realizou. Foi o que botou a cidade no mapa do Brasil. É um evento que nos posiciona na área cultural, na área audiovisual, na parte artística, e que repercute o nome da cidade o ano inteiro — avalia Rosa.
Para se ter ideia, levando em consideração os dados de 2021, o festival gera retorno de mídia espontânea quase três vezes maior que o do Natal Luz — estimados R$ 130 milhões contra R$ 45 milhões. Vale ressaltar que o evento cinematográfico foi realizado sem a presença do público nos dois últimos anos, ou seja, o evento de 2022 volta a ser presencial, pela primeira vez, desde 2019.
Rosa lembra que 86% da arrecadação do município advém do turismo:
— Temos o entendimento que a cultura e a segurança que Gramado transmite são os dois pontos mais importantes da nossa cidade. Procuramos passar essa mensagem em todos os eventos realizados: ser um destino cultural e seguro.
O futuro do evento é multiplataforma. Ainda que com o retorno do público, o festival deve manter exibições em TV (no Canal Brasil) e via streaming (Globoplay) e, além disso, investir em novos espaços – como, por exemplo, o TikTok. Para esta edição 50, foi acertada uma parceria com a rede social para lançar a primeira edição da mostra #FestivalDeCurtas. Os usuários poderão criar um curta de temática livre e duração de até três minutos. É uma das ações na busca para manter o festival relevante e contemporâneo, ressalta Santuario.
Por outro lado, há a intenção de estender o festival para diferentes atividades, além de desdobramentos como o Educavideo (projeto que busca promover a formação cinematográfica e audiovisual de adolescentes e jovens das escolas públicas do município) e a Gramado Film Commission (atração de produções audiovisuais para a cidade). Também está nos planos da prefeitura adquirir ações do Cine Embaixador (Palácio dos Festivais) para manter o cinema na cidade ativo não só no período do evento.
— Nós desejamos que o festival aconteça o ano inteiro. Que exista sessões, mostras e acontecimentos do festival no Palácio dos Festivais nos outros meses — afirma Rosa. — Fortalecer o festival não só como evento, mas enquanto movimento cultural e artístico para Gramado.
A 50ª EDIÇÃO
O Festival de Cinema de Gramado 2022 começa na próxima sexta-feira e se estende até 20 de agosto. Serão nove dias com exibições de curtas e longasmetragens, nas mostras gaúcha, nacional e internacional. Informações sobre filmes selecionados, horários das sessões, ingressos e homenagens, além das ações e exibições via TV e internet, podem ser obtidas em festivaldegramado.net.