Estreou na quarta-feira (18), na plataforma de streaming Paramount+, "o melhor filme sobre Dpvat já feito no Brasil", a comédia Vai Dar Nada. Quem diz isso é o diretor Jorge Furtado, que comandou as filmagens feitas em Porto Alegre ao lado de Ana Luiza Azevedo, a partir do roteiro escrito por ele e o parceiro de longa data Guel Arraes.
A referência ao seguro de trânsito é, claro, uma piada. Mas assim como as muitas outras feitas ao longo dos cem minutos de duração do filme, tem fundamento: tudo o que acontece na trama é por causa de uma moto.
Quem guia o veículo é o protagonista Kelson, vivido pelo ator Cauê Campos, rosto já conhecido pela nação noveleira por personagens infantis — esteve em tramas como Lado a Lado, O Sétimo Guardião e Totalmente Demais — e intérprete do simpático Capim da franquia D.P. A - Detetives do Prédio Azul. Kelson, que marca a transição de Cauê para papéis adultos, é um jovem negro, morador de periferia, que trabalha como pintor automotivo em uma oficina que na verdade é um desmanche de carros e, nas horas vagas, sai às ruas e rouba alguns para sobreviver. Aliás, "furta", como o personagem faz questão de frisar, em uma cena que deixa claro qual é o grande mote humorístico da trama: há moral na contravenção.
Essa discussão debochada sobre o que é legal e o que é moral e o quão injustas as legalidades podem ser - sobretudo se você for um brasileiro preto e pobre -, grande "mensagem" do filme, começa a ser ampliada quando Kelson sente urgir a necessidade de ter uma moto mais potente do que a popular que dirige. Em grande parte para conquistar Neide, interpretada com uma envolvente dose de malandragem por Fernanda Teixeira, que deixa claro para o protagonista em uma de suas investidas: "Não sou mina de 125", referência às cilindradas.
Quando, então, Fernando (Rafael Infante, do Porta dos Fundos), o patrão de Kelson, dono do desmanche, oferece a ele a possibilidade de adquirir uma 300 a preço duvidoso, o garoto só pensa em colocar Neide na garupa e fecha o negócio. Ele sabe qual é a origem dos veículos comercializados pelo chefe (o que em momento algum lhe parece um problema — lembre-se, é uma comédia), só não sabia que a desse seria, além de ilegal, imoral na "lei da quebrada": a moto é fruto de uma apreensão da polícia feita durante a prisão de Brasiliti (o cearense radicado no Rio Grande do Sul Heinz Limaverde), chefe do tráfico na comunidade em que o protagonista vive, desviada do depósito pela policial corrupta Suzi (Katiuscia Canoro, a Lady Katy do Zorra Total), esposa de Fernando e sócia no desmanche.
Brasiliti logo sai da prisão e quer saber por que a moto não está entre os itens recuperados da apreensão. Mas, a essa altura, ela também já não está com Kelson, uma vez que é novamente apreendida pela polícia quando o protagonista é pego em uma blitz. Aí, o desespero é instaurado. Em Kelson e em Suzi, cada um com seus motivos.
Neste momento do filme, tudo o que o espectador provavelmente vai desejar é que o garoto consiga recuperar a moto para voltar a dirigir com Neide lhe cheirando o cangote e que Suzi consiga dar um jeito de não ser pega, mais uma vez enganando o sistema. E é aí que mora o grande deboche da produção: ela consegue fazer o público ansiar por mais contravenções e torcer por um mocinho que na verdade é um fora da lei.
Ou como diz a música Fé no Pobre Louco, de MC Marks e MC Robs, que integra a trilha sonora do filme quase como um editorial, alguém que dá o seu "jeitinho" para conquistar o que almeja: "Em casa nunca mais faltar gás / Geladeira cheia e wi-fi / Deixar minha coroa em paz / Só trabalhando em casa agora". Um "pecador, mas filho de quem tem o perdão", como também cita a composição.
Por isso a produção não se propõe a exercer nenhum tipo de julgamento sobre a conduta dele, mas também não diz que é certo o que faz. Apenas compreende. E ilumina de forma muito bem-humorada algumas contradições tipicamente brasileiras.
— Existem coisas imorais que são legais. Um orçamento secreto, por exemplo, para mim é uma coisa imoral. Como que se tem um orçamento secreto com dinheiro público? Isso é imoral. Mas é legal, pelo jeito, porque foi feito. Então, o que é moral e legal não é exatamente a mesma coisa. E no Brasil, principalmente nas periferias, as pessoas vivem sob muitas diferentes leis: a lei da polícia, a lei da milícia, a lei do tráfico... Qual delas o cara obedece para sobreviver? Isso, o que os brasileiros fazem para sobreviver nesse país, dá muita comédia — comenta o diretor e roteirista Jorge Furtado. — O compromisso principal desta é fazer rir, mas um riso consequente, que transforma um pouco a gente. Não é só rir para aliviar, é rir para pensar também.
Além das reflexões e risadas provocadas pelo roteiro, que podem ser caras a qualquer espectador, outro ponto deve ser especialmente atrativo para aqueles que assistirem a partir de Porto Alegre. O filme foi inteiramente gravado aqui, apesar de a cidade nunca ser identificada na produção — aliás, o elenco inteiro mistura os mais diversos sotaques, o que propositalmente faz parecer que o longa retrata qualquer metrópole do país.
Mas para quem conhece a capital gaúcha, não vai ser difícil saber de onde a história está sendo contada. É possível identificar, por exemplo, o entorno da Praça da Matriz, o Bar Ocidente, a escadaria colorida da João Manoel e outras ruas do Centro, que são palcos da eletrizante perseguição policial protagonizada por Kelson momentos antes de sua nova moto ser apreendida.
Do outro lado da cidade, vilas da Zona Sul serviram de set para as cenas que mostram a comunidade onde ele vive com a irmã Rebeca, interpretada por Jéssica Barbosa. Rebeca, aliás, é protagonista de uma trama secundária que por vezes acaba por embolar o andamento do filme, mas tem em sua construção enquanto personagem outro grande destaque da produção.
Jovem negra e periférica, bonita, bem-resolvida sobre viver um romance com outra mulher (a advogada Márcia, vivida por Kizi Vaz), empoderada, estudante de Direito e batalhadora, ela é o exemplo de como a atriz deseja ver mulheres negras sendo representadas no cinema e na TV, conforme revelou em entrevista.
Para Jéssica, esse é um dos caminhos para combater um infeliz outro "porto-alegrismo" que marcou as gravações de Vai Dar Nada: o racismo. Segundo a atriz, apesar do acolhimento recebido pela Casa de Cinema de Porto Alegre, que divide a produção com o Paramount+, ela e os demais negros e negras do elenco vivenciaram uma série de episódios de discriminação racial durante a passagem pela capital gaúcha para gravar o filme.
— A gente precisa usar esse lugar que a televisão tem, que o cinema tem, como uma ação para construir novas narrativas e mudar essas interações sociais, porque não dá mais — opina a atriz. — E Vai Dar Nada é o riso como política de resistência. Então, o riso enquanto fazer político — define.