Pintou outro favorito aos Kikitos que serão entregues no sábado (19) no 51º Festival de Cinema de Gramado: O Barulho da Noite, filme realizado no Tocantins pela diretora Eva Pereira e estrelado por Emanuelle Araújo e Marcos Palmeira. Sua exibição na competição de longas-metragens brasileiros foi nesta terça-feira (15), quando também o segundo documentário na disputa, Da Porta pra Fora, de Thiago Foresti, e mais dois curtas: Ela Mora Logo Ali, de Fabiano Barros e Rafael Rogante, e Remendo, de Roger Ghil.
Se a noite de segunda em Gramado havia se concentrado no sertão cearense, a de terça se dedicou a cenários e personagens periféricos. O simpático Ela Mora Logo Ali é a primeira produção de Rondônia a disputar o festival. Mãe de um rapaz com paralisia cerebral, uma humilde e analfabeta vendedora de chips de banana (Agrael de Jesus, muito emocionada por subir ao palco do Palácio dos Festivais logo depois da homenagem à atriz Léa Garcia) vê sua vida iluminar-se ao conhecer, dentro de um ônibus, uma jovem que está lendo Dom Quixote — ou Dom Caixote, como a protagonista entende.
Já Remendo foi filmado em Vila Velha, no Espírito Santo, com elenco majoritariamente negro. Embora por vezes faça jus ao título, parecendo uma colagem de momentos desconexos, tem uma notável inventividade visual e formal. Ou seja, também faz jus ao discurso de Roger Ghil, que, depois de entoar um canto iorubá, falou sobre a necessidade de romper com reencenação do trauma colonial e de construir novas narrativas, e também sobre como a ancestralidade vai ser sempre a resposta para os perigos da modernidade.
Rodado no Distrito Federal entre 2020 e 2021, o documentário Da Porta pra Fora tem um ótimo tema — a dura vida dos motoboys durante a pandemia de covid-19 — e ótimos personagens. Thiago Foresti acompanhou as rotinas de Alessandro da Conceição, o Sorriso, que acabaria se tornando uma liderança dos entregadores de aplicativo; Marcos Nunes, bolsonarista e extremamente devoto a Deus; e Keliane Alves, que sonha em ser cantora e para quem, "com todo respeito", o então presidente da República, cujas falas sobre "histórico de atleta" e "gripezinha" são testemunhadas em cena, "tem um problema na cabeça".
O filme retrata uma categoria profissional que se expõe a riscos no trânsito e sofre com renda baixíssima e pouquíssimos direitos e benefícios — é ultrajante o tamanho do frasco de álcool gel que recebem de uma das empresas (os nomes do aplicativos foram omitidos para evitar a judicialização, explica um letreiro, mas aparece a fictícia Tifoodi). A certa altura, Marcos conta que nunca tinha errado uma entrega, mas acabou bloqueado, ou seja, impedido de trabalhar para sustentar a família, por levar ao cliente errado um pacote no valor de R$ 6,92. E o sujeito aceitou a encomenda mesmo sabendo que não era a sua.
O grande problema de Da Porta pra Fora é que o documentário se revela bastante repetitivo ao longo de seus 84 minutos de duração, reiterando dramas e queixas e espichando imagens dos deslocamentos dos personagens. Fica redundante também porque o filme não escuta duas partes fundamentais: os patrões e os clientes. Quase dá para dizer que estaria melhor resolvido e seria mais contundente num curta de 25 minutos.
O Barulho da Noite é outro filme que parece durar mais do que seus 87 minutos. Não só porque a diretora e roteirista Eva Pereira gosta de alongar os planos captador pelo diretor de fotografia Fabrício Tadeu (de Aquarius) e montados por André Sampaio, no intuito de provocar imersão. Mas talvez, ou principalmente, por causa do peso da trama.
Convém avisar: este texto precisará DAR SPOILERS.
A história se passa na zona rural do Tocantins. Ganhador do Troféu Oscarito no ano passado, Marcos Palmeira interpreta o agricultor Agenor, o pai amoroso e brincalhão das meninas Maria Luiza (Alícia Santana, desde já forte candidata ao Kikito de atriz coadjuvante) e Ritinha (Anna Alice Dias). Emanuelle Araújo (que também assina a trilha sonora e uma canção, ao lado de Ricco Viana) faz a mãe, Soninha, que é mais ríspida e exigente.
Certo dia, aparece o jovem Athayde (Patrick Sampaio), que se apresenta como o sobrinho de Agenor que veio ajudar na lavoura. Soninha tem uma reação de desconfiança em relação a ele — ou será tensão sexual?
Último aviso sobre spoilers.
A aproximação carnal entre Soninha e Athayde é flagrada por Maria Luiza durante um jantar, quando, debaixo da mesa, ela espia a mãe esfregar o pé na perna do sujeito. Tudo começa a ruir de vez quando Agenor, fiel e folião do Divino Espírito Santo, vai se ausentar por 40 dias para participar da Festa do Divino.
A transformação do calado Athayde em homem agressivo e abusivo soa um tanto brusca, mas isso acaba aumentando o impacto do que está por vir. Em uma das cenas mais dolorosas que eu assisti nos últimos anos, ainda que delicada por evitar qualquer tipo de violência gráfica, Athayde estupra Maria Luiza. Tudo o que vemos é ele acordar a menina na calada da noite e tirá-la do quarto. Depois, bastam os gritos ao fundo, bastam as lágrimas escorrendo do rosto de Emanuelle Araújo — paralisada, por medo ou por trauma, ou mesmo pela atração que sente pelo violador, a mãe não faz nada para salvar a filha. Será que Ritinha terá o mesmo destino?
O Barulho da Noite derrubou e depois levantou a plateia do Palácio dos Festivais. Quando os letreiros finais trouxeram estatísticas sobre a violência sexual no Brasil, informando que a maioria das vítimas são crianças e adolescentes e que "enquanto você assistia a este filme, 17 estupros aconteceram", explodiram os aplausos, com muita gente em pé. Boa parte da aclamação deve-se à grande presença, nas poltronas, de integrantes da equipe (umas 25 pessoas subiram ao palco na apresentação) e de espectadores que vieram do Tocantins para prestigiar a exibição. Mas não é exagero credenciar o longa como um provável ganhador de Kikitos.
Existem alguns fatores que podem ser valorizados pelos jurados, a começar pela combinação de descentralização e denúncia, que certamente contribuiu para a consagração, em 2022, de Noites Alienígenas, produzido no Acre, onde o cineasta Sérgio de Carvalho retratou a abdução da juventude de Rio Branco pelo crime organizado. Há ainda o fato de Eva Pereira ser a única diretora entre os seis títulos na competição - e justamente em um ano no qual o Festival de Gramado concedeu a mulheres suas cinco principais homenagens (Léa Garcia e Laura Cardoso no Troféu Oscarito, Lucy Barreto no Eduardo Abelin, Alice Braga no Kikito de Cristal e Ingrid Guimarães no Cidade de Gramado).