Noites Alienígenas, que foi adicionado recentemente ao menu da Netflix, atravessou o Brasil para conquistar o 50º Festival de Gramado, em agosto do ano passado. Dirigido por Sérgio de Carvalho, o filme produzido no Acre ganhou cinco Kikitos: melhor longa-metragem brasileiro, ator (o estreante Gabriel Knoxx, rapper como o seu personagem), ator coadjuvante (Chico Diaz), atriz coadjuvante (Joana Gatis) e o troféu da crítica. Também recebeu uma menção honrosa pela atuação de Adanilo.
— Foi um filme óvni que aterrissou em Gramado — celebrou, no palco do Palácio dos Festivais, o diretor, lembrando o comentário da crítica de cinema Maria do Rosário Caetano.
— A gente vem de um lugar que sofreu muito bullying, com pessoas dizendo que (o Acre) não existia. Mas a gente existe. A foto da cultura brasileira costuma ser muito branca e masculina, mas agora nós, mulheres, indígenas, negros, demos uma empurradinha para o lado e estamos na foto também — afirmou a produtora executiva Karla Martins.
A premiação de Gramado foi repartida por títulos que dão visibilidade e voz às populações marginalizadas e às comunidades periféricas. Marte Um, que levou quatro Kikitos, acompanha os sonhos e os perrengues de uma família negra da periferia de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. A Mãe, que ganhou três, é ambientado em um bairro pobre da capital paulista, o Jardim Romano, onde a protagonista luta para encontrar o filho adolescente, desaparecido após uma abordagem policial. Entre os curtas, Fantasma Neon, com quatro troféus, é um musical sobre os entregadores de aplicativo que usam bicicleta. O Elemento Tinta venceu a categoria de montagem e o júri popular ao retratar praticantes do pixo que decidem protestar contra o governo após a morte de um amigo por covid-19. O Pato, melhor roteiro, tem como personagem uma nordestina negra que encara a violência doméstica. E Ímã de Geladeira mereceu menção honrosa "por catapultar a urgente discussão sobre o racismo estrutural através do horror cósmico".
Noites Alienígenas é inspirado no romance homônimo publicado em 2011 pelo próprio Sérgio de Carvalho, que nasceu no interior de São Paulo, formou-se em cinema no Rio de Janeiro e há 20 anos mora no Acre. No seu currículo, estão o curta de animação Awara Nane Putane: Uma História do Cipó (2013), que aborda um mito de criação da cultura yawanawa; o documentário Empate (2018), sobre companheiros do seringueiro, ambientalista e ativista político Chico Mendes (1944-1988), assassinado a mando de fazendeiros da Amazônia; e as séries de TV O Olhar Que Vem de Dentro (2018), sobre religiões brasileiras a partir do ponto de vista infantil, e Nokun Txai: Nossos Txais (2019), sobre os povos indígenas acrianos.
Escrita por Carvalho, Camilo Cavalcante e Rodolfo Minari, a trama se passa nos limites entre o urbano e a Floresta Amazônica. O título tem um duplo sentido. Por um lado, alude à porção realismo mágico do filme; por outro, sinaliza para uma triste realidade: a abdução da juventude de Rio Branco, a capital do Estado, pelo crime organizado, a partir da chegada das facções do Sudeste. Segundo Noites Alienígenas, nos últimos 10 anos o número de homicídios aumentou 183% entre adolescentes e jovens. E o poder público parece omisso: não se vê policiais nem viaturas em cena.
— Quando eu fui fazer o roteiro, cinco anos depois de escrever o livro, percebi que precisava adaptar, porque a história do Acre tinha mudado — contou o diretor em entrevistas, lembrando que o livro foca mais na dependência química de um personagem. — Neste meio tempo, percebi que a periferia do Acre era outra. A gente sofreu um impacto tremendo com a chegada das facções criminosas do Sudeste. Chegaram de maneira bruta, cooptando muito dessa juventude, mudando o tecido social da cidade e de outras do Norte.
Com resgates marcantes na trilha sonora — Cachorro Urubu (1973), de Raul Seixas e Paulo Coelho, e Porto Solidão (1980), sucesso de Jessé composto por Zeca Bahia — e com planos belíssimos captados pelo diretor de fotografia Pedro von Krüger e editados por André Sampaio, ora colando a câmera no corpo dos atores (ou até dos animais, como uma cobra), ora inserindo os personagens na paisagem exótica, Carvalho faz rodar uma trágica ciranda de tipos e situações que não deixam de ser clichês. Mas essa condição é minimizada pela paixão do elenco — quase todo praticamente amador — e pela relevância sociopolítica da trama.
A figura de Paulo, vivido por Adanilo, ilustra a ruína dos povos indígenas perante o tal de "progresso" das cidades: ele se tornou dependente químico e rouba pertences da própria mãe para comprar drogas. Há um rapper de 17 anos, Rivelino, o Riva (papel de Gabriel Knoxx), que é apaixonado pela garçonete e mãe solteira Sandra (Gleici Damasceno, vencedora do BBB 18) e que acaba se juntando a uma facção.
E é atrás de notícias sobre esse garoto que uma mãe hedonista e em princípio um tanto distante, Beatriz (Joana Gatis), vai à casa de Alê (Chico Diaz), um traficante "das antigas", que não compactua da violência empregada pelos novos barões do crime, que rimam irmandade com mortandade — uma imagem emblemática é a do soldado do tráfico que carrega uma arma na cintura e, às costas, traz tatuado o nome de Jesus Cristo.