O discurso do diretor de um filme sem diálogos me fez chorar na quinta noite de competição do 50º Festival de Cinema de Gramado, nesta terça-feira (16), em que foram exibidos o longa-metragem brasileiro A Porta ao Lado, de Julia Rezende, o argentino Cuando Oscurece, de Néstor Mazzini, e os curtas O Pato (PB), de Antônio Galdino, e Solitude (AP), de Tami Martins e Aron Miranda — a única animação entre os 14 títulos concorrentes da categoria.
Quando postou-se no púlpito do palco do Palácio dos Festivais, Galdino cumprimentou o público e disse que já havia chorado bastante ao longo do dia. Acreditava que as lágrimas já haviam secado. Mas não conteve a emoção, a ponto de, por alguns instantes, precisar tomar fôlego para continuar seu discurso.
Foi comovente ouvir o diretor — que é potiguar, mas mora nos Estados Unidos e filmou no interior da Paraíba — descrever a saga para a produção de O Pato.
— Vendi coisas de casa, lavei muitos pratos e carreguei caixas para conseguir filmar e pagar a minha equipe. Quero agradecer a eles por terem acreditado em mim e acreditado no projeto. Quero agradecer meu pai, que veio do Rio Grande do Norte para este momento. E meus amigos de Utah (nos EUA), como o Alan, que comprou minha passagem (de avião) — disse Galdino, que dedicou o curta ao montador Ely Marques, morto por covid-19.
Na sequência, a atriz Norma Góes ressaltou o protagonismo negro nesta edição do Festival de Gramado (há personagens de destaque em títulos como Noites Alienígenas, O Pastor e o Guerrilheiro, A Porta do Lado, Marte Um e os curtas Deus Não Deixa e O Último Domingo).
— Que não seja um ato, mas uma constante — afirmou Norma, emendando com uma referência à canção composta por Polyana Resende para O Pato, que tem versos como "Não vou mais engolir o choro".
Em cena, apostando em imagens alegóricas (como a de uma galinha sendo depenada e esquartejada) e detalhes reveladores, sem jamais recorrer a palavras — a não ser as da música que encerra o filme roteirizado por Fernando Domingos —, Galdino retrata o cotidiano de uma mãe, Cida, e sua filha pequena (Ana Júlia). Pouco a pouco, de forma arrebatadora, vamos apreendendo o contexto de violência doméstica e entendendo a força dos versos mencionados por Norma Góes — e essa força é ampliada pelo olhar que a atriz, já nos créditos finais, firma em direção ao espectador.
Depois desse ótimo curta, fomos brindados por um ótimo longa. Escrito por Patrícia Corso e LG Bayão, A Porta ao Lado tem direção de Julia Rezende, filha do cineasta Sérgio Rezende e da produtora Mariza Leão e realizadora das comédias Meu Passado me Condena (2013), Meu Passado me Condena 2 (2015), De Pernas pro Ar 3 (2018) e Depois a Louca Sou Eu (2019). Agora, ela deixa de lado a comédia (embora não abra mão do senso de humor) para comandar um drama sobre amor, relacionamentos, desejo sexual, mentiras, traição, autoengano, ter ou não ter filhos, tédio, dinheiro e outros quetais que pautam as vidas dos casais.
Na primeira cena, acompanhamos a tensa e quieta chegada de quatro personagens a um edifício charmoso no Rio. Em breve saberemos que são dois casais. De um lado, estão Mari, uma chef de cozinha interpretada com gana e nuances por Letícia Colin, e Rafa (Dan Ferreira), bem-sucedido executivo de um banco. Do outro, os vizinhos de prédio, Isis (Bárbara Paz) e Fred (Túlio Starling, presente também em O Pastor e o Guerrilheiro), que mantêm uma fazenda de produtos orgânicos e um casamento aberto.
Um flashback leva o filme ao começo de tudo, a noite em que Mari e Rafa se conheceram. Uma eficiente elipse de tempo nos traz para os dias atuais. Já casados, os dois personagens são despertados pelo barulho de uma janela quebrada, um acidente com o guindaste usado na mudança dos novos vizinhos. A cena é bastante simbólica: Isis e Fred estão invadindo o relacionamento, e Mari, ao juntar os cacos de vidro, se corta — um aviso de que ela vai se machucar a partir do momento em que se aproximar do sensual marido da vizinha.
A Porta ao Lado não tem pudor para falar de sexo e para mostrar transas, mas jamais se torna apelativo. É um filme maduro, com discussões ora bem-humoradas, como quando Mari e Rafa ironizam o casal vizinho ("Casamento aberto é desespero, é para ver se pinta ciúme para salvar a relação, é para gente que não tem contas a pagar e inventa preocupação"), ora espinhosas, como quando o mesmo casal, em meio a uma briga, trata sobre machismo e racismo — essa cena em especial deve provocar conversas acaloradas quando estiver ao alcance do grande público.
Todo o elenco atua bem, mas Letícia Colin desponta como grande rival de Marcelia Cartaxo (A Mãe) na disputa pelo Kikito de melhor atriz. A Leopoldina da novela Novo Mundo (2017) e a Rosa Câmara do folhetim Segundo Sol (2018) consegue um raro equilíbrio: sabemos que ali está uma artista, mas também conseguimos enxergar em Mari uma pessoa real, que vai se surpreendendo consigo mesma enquanto se excita ou hesita.
Outra atuação irresistível de terça à noite foi a da menininha argentina Matilde Creimer Chiabrando em Cuando Oscurece. Ela interpreta Flor, que está viajando de carro na companhia do pai, Pedro, personagem encarnado pelo uruguaio Cesar Troncoso, um venho conhecido do Festival de Gramado — ganhou os prêmios de melhor ator da mostra latina por O Banheiro do Papa (2007) e A Oeste do Fim do Mundo (2013), além do Kikito de Cristal em 2020.
Flor nos faz rir com suas perguntas ao pai sobre sexo e seus pedidos para ir à Disney. Mas há uma atmosfera de tensão, realçada pela direção de fotografia assinada por Guillermo Saposnik e pelos longos silêncios — a trilha sonora de Tomas Rodriguez e Mariano Abalo aparece com muita parcimônia. Também estranhamos as atitudes do pai, que fica postergando a apresentação dos documentos em uma pousada e o telefonema para a mãe solicitado pela filha.
É de se estranhar mesmo, porque, como frisou o cineasta Néstor Mazzini no discurso de apresentação, esta é a segunda parte de uma trilogia iniciada em 36 Horas (2021). Nesse filme, são apresentados os três personagens principais de Cuando Oscurece — o trio se completa com Erica (Andrea Carballo), a mãe — e, a julgar pelas resenhas, os conflitos financeiros e familiares que motivaram Pedro a fazer o que faz agora. Mas nem o público nem a crítica do Festival de Gramado foram bem informados sobre isso, o que prejudica a fruição.
Para piorar, a sinopse oficial divulgada pela produção do longa argentino e publicada no guia do Festival informou demais sobre a trama de Cuando Oscurece. Praticamente tudo o que ocorre nos 76 minutos de duração foi contado ali (e repetido no palco do Palácio dos Festivais). Refazendo a frase, só estranha os acontecimentos do filme quem não leu ou ouviu. Os demais, como eu e meu colega de imprensa Cristiano Mentz Aquino, ficamos torcendo por alguma mudança de rumo. Em vão.