Ainda faltam três títulos nacionais e dois estrangeiros, mas dificilmente O Último Animal perderá o posto de pior longa-metragem do 50º Festival de Cinema de Gramado. Dirigido pelo português Leonel Vieira, o filme fechou a quarta noite de competição no Palácio dos Festivais, nesta segunda-feira (15), após a exibição do brasileiro O Pastor e o Guerrilheiro, de José Eduardo Belmonte, dos curtas Tekoha (SP), de Carlos Adriano, e Serrão (MG), de Marcelo Lin, e da entrega do troféu Eduardo Abelin ao cineasta Joel Zito Araújo.
Vieira, 53 anos, é um velho conhecido de Gramado. Em 1999, na época em que o festival não distinguia longas nacionais dos internacionais, recebeu o Kikito de melhor filme com seu trabalho de estreia, A Sombra dos Abutres (1998) — que também faturou as categorias de ator (Diogo Infante) e fotografia —, ambientado em Portugal da década de 1960, à época da ditadura salazarista. O cineasta voltou a competir com A Selva (2002), aventura sobre um jovem monarquista português que, em 1912, emigrou para o Brasil e acabou se exilando em Belém do Pará, virando seringueiro na Amazônia. Em O Último Animal, novamente a história se passa nas nossas terras, agora, no Rio de Janeiro de 2012.
É irônico que o filme tenha sido exibido justamente na noite de homenagem a Joel Zito. À tarde, durante uma entrevista coletiva, o diretor de A Negação do Brasil (2000), documentário sobre os papéis desempenhados por negros nas telenovelas, afirmou ter visto avanços na luta contra a estereotipagem, principalmente de personagens pretos e pardos. Pois bem: O Último Animal é um catálogo de estereótipos, um Rio para o gringo ver, desejar e temer. Aliás, convém reforçar e avisar: o título integra o certame internacional do Festival de Gramado, e há vários diálogos em inglês.
A coisa começa com um violento acidente: um caminhão atinge em cheio um carro de polícia. De dentro desse veículo, onde há uma personagem feminina amarrada, amordaçada e aparentemente morta, sai o sargento Magalhães (Marcello Gonçalves), que, ao abrir o bagageiro, revela a presença de um homem que também tem as mãos imobilizadas. Com a arma apontada para a cabeça do sujeito, Magalhães pega o celular e faz uma ligação:
— Doutor Ciro. Tive um problema. Mas tô com o gringo aqui.
Daí a trama volta no tempo (é para ser um mês, segundo um letreiro, mas mais adiante surge uma referência a "nesses dois meses") e passa a ser narrada por Edinaldo, o Didi (Junior Vieira). Trata-se de um jovem do fictício Morro do Coral, o irmão estudioso e trabalhador honesto de Calango, o impiedoso chefão do tráfico de drogas — qualquer semelhança com Cidade de Deus (2002) não há de ser mera coincidência.
Com um texto que tenta, sem sucesso, ser coloquial, Didi vai rememorar as origens do jogo do bicho e suas conexões com o Carnaval e a corrupção de Estado. Também vai apresentar os personagens. O gringo ameaçado de morte é Alex (o britânico Duran Fulton Brown), inglês que veio ao Rio para atuar em uma ONG da Rocinha, mas acabou seduzido pela cocaína e pelo sexo (afinal, todas as mulheres brasileiras são fogosas, né?). O Doutor Ciro (o português Joaquim de Almeida) é o maior bicheiro do pedaço, patrocinador de um time de futebol, de uma escola de samba, de orfanatos e de igrejas. A moça dentro do carro é Paulinha (Gabriela Loran), que tem ligações com Magalhães, Calango, Alex e Ciro, aspira ser cantora de funk e guarda segredos cabeludos.
Vou me permitir pelo menos um spoiler no parágrafo abaixo.
Enquanto passeamos de carro ao som de um samba-rock, visitamos uma quadra de escola de samba ou acompanhamos a gravação de um clipe na laje, O Último Animal vai se tornando um filme cada vez mais constrangedor. Em todos os aspectos, incluindo as cenas de ação, que são mais raras do que se poderia imaginar. Os diálogos são extremamente didáticos, e tanto pior que alguns atores sejam ruins, como Duran Fulton Brown, uma sub-sub-sub mistura de Christian Bale e Jake Gyllenhaal. Cabe a Joaquim de Almeida empregar um suposto ditado popular que, confesso, eu desconhecia: "A roupa está bem lavada e com pouco sabão". O trem descarrila — ou melhor, o caminhão bate em cheio quando Didi, que até então vinha manifestando total contrariedade com o rumo tomado pelo irmão, e que aparentemente nunca havia colocado a mão em uma arma, se transforma em um líder da boca e um matador frio.
Feridas do Brasil
Mas a quarta noite do Festival de Gramado não foi feita só de desastres, embora os curtas Tekoha e Serrão não tenham empolgado. O primeiro, sobre os ataques que indígenas vêm sofrendo no Mato Grosso do Sul, até que prometia, ainda mais depois de ouvirmos o diretor Carlos Adriano falar sobre as "imagens e sons colhidos na hora do terror, arrancados de um inferno na terra, um inferno que se chama Brasil, onde o genocídio da população indígena virou política de Estado". Mas o filme se mostra por demais "poético", para usar a palavra de seu próprio realizador. Sem nenhum tipo de entrevista ou depoimento, não atinge a contundência desejada.
Tekoha, contudo, tem o mérito de olhar para uma ferida aberta do Brasil. É o que também faz O Pastor e o Guerrilheiro, o 13º longa-metragem de José Eduardo Belmonte, autor de A Concepção (2005), Se Nada Mais Der Certo (2008), Alemão (2014) e Alemão 2 (2022). O filme trouxe para o Festival de Gramado uma grande equipe — no total, subiram ao palco 26 pessoas, incluindo Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura, e o ex-deputado federal José Genoino, ambos na condição de guerrilheiros na época da ditadura militar. A propósito, a passagem da trupe pelo tapete vermelho foi embalada por manifestações de apoio ao candidato do PT à Presidência, Luiz Inácio Lula da Silva, o que provocou, nos corredores da Rua Coberta, vaias e gritos de reação de eleitores do atual presidente, Jair Bolsonaro (PL).
Com roteiro de Nilson Rodrigues, José Rezende Jr., José Eduardo Belmonte e Josefina Trotta, O Pastor e o Guerrilheiro alterna-se entre dois tempos. Em 1999, perto da virada do milênio, Juliana (Julia Dalavia), filha ilegítima de um coronel (Ricardo Gelli) que cometeu suicídio, descobre que seu pai foi torturador durante o regime militar. Isso impõe um dilema: a herança deixada vai ajudar no tratamento da avó doente (Cássia Kis), mas é moral aceitar um dinheiro provavelmente sujo de sangue?
A partir de um livro que ela encontra na casa do coronel, História de um Guerrilheiro, assinado por Miguel Souza — uma versão ficcional do revolucionário comunista Glênio Sá (1950-1990) —, somos transportados para a Brasília de 1968. Mais precisamente, a Universidade de Brasília (UnB), onde Miguel (encarnado por Johnny Massaro) conhece Helena (Ana Hartmann) durante a violenta repressão da PM a um protesto estudantil. Os dois acabam se juntando à Guerrilha do Araguaia, movimento criado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) na região amazônica, no final dos anos 1960. Lá, assumem os codinomes João e Marta. Ele termina capturado pelo Exército, submetido a torturas e aprisionado na mesma cela do pastor do título, Zaqueu, preso por engano (um engano talvez temperado pelo racismo).
Esse personagem é brilhantemente interpretado por César Mello (presente na competição também por O Clube dos Anjos), tanto no passado quanto no presente. A ponto de o filme cair muito quando o ator não está em cena — a jovem Julia Dalavia, 24 anos, ainda está ganhando estofo dramático, e os diálogos das sequências que envolvem os universitários ou os guerrilheiros parecem jograis de escola, altamente expositivos e romantizados (mais do que em Marighella).
Mas os pontos negativos e a previsibilidade da trama são fartamente compensados a cada sermão do pastor Zaqueu. Por meio de suas relutâncias e suas metáforas, o personagem fala sobre o difícil acerto de contas que o Brasil precisa fazer com o seu passado e comenta a trajetória política do país: "As palavras dos sábios precisam ser ouvidas com mais atenção do que os gritos dos néscios que comandam as máquinas da guerra. Mas basta um só pecador para destruir tanta coisa boa".