Ticiano Osório

Ticiano Osório

Jornalista formado pela UFRGS, trabalha desde 1995 no Grupo RBS. Atualmente, é editor em Zero Hora e escreve sobre cinema e seriados em GZH e no caderno ZH2.

Diário da Serra (3)
Opinião

A noite em que o Festival de Gramado foi do trágico ao desesperador

Terceiro dia de competição exibiu o filme brasileiro "Noites Alienígenas" e o longa mexicano "El Camino de Sol"

Ticiano Osório

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Vitrine Filmes / Divulgação
Festival de Gramado: Gabriel Knoxx e Gleici Damasceno em "Noites Alienígenas", filme rodado no Acre por Sérgio de Carvalho

No Dia dos Pais, o 50º Festival de Cinema de Gramado exibiu dois filmes em que uma mãe sai à procura do filho: o brasileiro Noites Alienígenas, de Sérgio de Carvalho, e o mexicano El Camino de Sol, de Claudia Sainte-Luce.

Já se pode dizer que essa é uma situação recorrente nos longas-metragens concorrentes. Na noite de abertura, na sexta-feira (12), o Palácio dos Festivais assistiu a A Mãe, do diretor porto-alegrense radicado em São Paulo Cristiano Burlan. Marcelia Cartaxo interpreta Maria, moradora de uma comunidade periférica, o Jardim Romano, empreende uma busca pelo paradeiro ou pelo menos o corpo do filho adolescente, provavelmente morto pela Polícia Militar.

Nesta terça-feira (16), na competição estrangeira, será a vez de Cuando Oscurece, do argentino Néstor Mazzini. A sinopse diz o seguinte: Flor pensa que está de férias com o pai, mas na realidade ele a está sequestrando. Enquanto isso, Erica, sua mãe, tenta encontrá-la.

Pressphoto / Divulgação
"Ímã de Geladeira" (SE), curta de Carolen Meneses e Sidjonathas Araújo exibido no Festival de Gramado

A terceira noite do Festival de Gramado também permitiu visualizar uma outra tônica, agora na disputa dos curtas-metragens nacionais. Os filmes apresentados vêm olhando e dando voz para personagens excluídos e marginalizados, além de abordarem problemas sociais. Deus Não Deixa (RJ), de Marçal Vianna, é um documentário sobre Miguel, sujeito dividido entre sua sexualidade e a religião: antes encarnava a Mika Sapekinha, hoje diz ter abraçado Cristo. O Fim da Imagem (PR), de Gil Baroni, emprega o terror para falar sobre bullying na escola e nas redes sociais. Benzedeira (PA), de Pedro Olaia e San Marcelo, acompanhou o cotidiano de Manoel Amorim, conhecido como Maria do Bairro, a "bicha preta" dedicada à cura do corpo e da alma dos outros.

No domingo (14), foi a vez de Ímã de Geladeira (SE), de Carolen Meneses e Sidjonathas Araújo, e O Elemento Tinta (SP), de Luiz Maudonnet e Iuri Salles. O primeiro, segundo disse Carolen, "usa códigos do terror e do afro-surrealismo por que não existe nada mais surreal do que ser negro no Brasil". Uma pena que a ideia sobre uma geladeira perigosa apenas para negros seja mal executada, com elenco fraco e problemas sérios de som — em dado momento, dois personagens dialogam ao mesmo tempo em que escutamos o barulho de uma máquina de costura e a estática de um rádio (e apesar das boas intenções, o sujeito que fica fazendo linguagem de sinais no canto da tela acaba desviando demais a atenção do espectador).

Pressphoto / divulgação
"O Elemento Tinta" (SP), curta de Luiz Maudonnet e Iuri Salles exibido no Festival de Gramado

No segundo, a morte de um praticante do chamado pixo, por causa da pandemia de covid-19, serve de mote para um curtíssimo documentário (tem menos de 10 minutos) sobre o universo dos pichadores, com críticas ao governo Jair Bolsonaro dentro e fora da tela. A duração acaba pesando contra: O Elemento Tinta se beneficiaria se tivesse desenvolvido mais os personagens e discutido o assunto um pouco mais a fundo, em vez de se concentrar tanto na força de suas imagens.

Noites Alienígenas também se filia a essa corrente que dá foco às populações marginalizadas e às comunidades periféricas. Afinal, trata-se de um filme produzido no Acre, ambientado nos limites entre o urbano e a Floresta Amazônica. No palco do Palácio dos Festivais, integrantes da equipe enfatizaram a importância da descentralização cultural e a contribuição ao imaginário nacional que pode ser proporcionada pela Amazônia — região que, como lembrou a produtora Karla Martins, atravessa nove Estados (Amazonas, Acre, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins). 

Pressphoto / Divulgação
Adanilo Reis em "Noites Alienígenas", filme de Sérgio de Carvalho que disputa o Festival de Gramado

Este será o primeiro longa-metragem acriano a estrear nos cinemas, com distribuição da Vitrine Filmes. É inspirado no romance homônimo lançado pelo próprio diretor Sérgio de Carvalho em 2011. O título tem um duplo sentido. Por um lado, alude à porção realismo mágico do filme; por outro, sinaliza para uma triste realidade: a abdução da juventude de Rio Branco, a capital do Estado, pelo crime organizado, a partir da chegada das facções do Sudeste. Segundo Noites Alienígenas, nos últimos 10 anos o número de homicídios aumentou 183% entre adolescentes e jovens. E o poder público parece omisso: não se vê policiais nem viaturas em cena.

Com planos belíssimos, ora colando a câmera no corpo dos atores (ou até dos animais, como uma cobra), ora inserindo os personagens na paisagem exótica, Carvalho faz rodar uma trágica ciranda de tipos e situações que são clichês, mas essa condição é minimizada pela paixão do elenco — quase todo praticamente amador — e pela relevância sociopolítica da trama. A figura de Paulo, vivido por Adanilo Reis, ilustra o corrompimento dos povos indígenas perante o tal de "progresso" das cidades: ele se tornou dependente químico e rouba pertences da própria mãe para comprar drogas. Há um rapper de 17 anos, Rivelino, o Riva (papel de Gabriel Knoxx), que é apaixonado pela garçonete e mãe solteira Sandra (Gleici Damasceno, vencedora do BBB 18) e que acaba se juntando a uma facção. E é atrás de notícias sobre esse garoto que uma mãe hedonista e em princípio um tanto distante, Beatriz (Joana Gatis), vai à casa de Alê (Chico Diaz), um traficante "das antigas", que não compactua da violência empregada pelos novos barões do crime, que rimam irmandade com mortandade — uma imagem emblemática é a do soldado do tráfico que carrega uma arma na cintura e, às costas, traz tatuado o nome de Jesus Cristo. 

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Armando Hernández e Anajosé Aldrete em "El Camino de Sol", filme da mexicana Claudia Sainte-Luce no Festival de Gramado

Se o desespero de uma mãe é coadjuvante em Noites Alienígenas, torna-se protagonista em El Camino de Sol. Nos primeiros minutos de mais um doloroso filme mexicano, Sol (interpretada por Anajosé Aldrete, que jamais escorrega para a pieguice), está com o filho de seis, sete anos, Christian, dentro de um carro, às portas de um conjunto habitacional. É que o menino quer visitar o pai, Jaime (Armando Hernández), ex-marido da personagem principal, secretária no consultório de um ginecologista. 

De repente, em um breve momento de distração, o guri é agarrado e levado para dentro de uma caminhonete preta, que dispara por uma avenida. Em vão, Sol tenta correr atrás.

A angústia se intensifica diante do descaso, da morosidade e/ou da corrupção policial. A partir daí, a diretora e roteirista Claudia Sainte-Luce pergunta: até onde pode ir uma mãe desesperada para encontrar o filho? Simultaneamente, o filme tece comentários ácidos sobre a indignação seletiva — os surpreendentes caminhos que Sol toma são capazes de provocar nesguinhas de sorriso até no espectador mais aflito.

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