Aparentemente, não fui o único a reclamar do atraso de mais de uma hora na noite de abertura do 50º Festival de Cinema de Gramado, na sexta-feira (12). No sábado (13), a programação, marcada para começar sempre às 18h, teve início às 18h14min. Mas com a exibição de dois longas (o brasileiro O Clube dos Anjos e a coprodução entre Uruguai e Argentina 9) e dois curtas nacionais, mais a entrega do troféu Oscarito para o ator Marcos Palmeira, a sessão só foi terminar por volta das 23h45min. Não por causa da duração dos filmes, nem mesmo pela homenagem ao ator ganhador de dois Kikitos — o que pesou na dilatação do tempo foram as apresentações feitas pelas equipes dos primeiros títulos concorrentes, a ponto de Renata Boldrini, mestre de cerimônias ao lado de Roger Lerina, dar uma indireta ("Já estamos atrasados") após uma das turmas descer do palco do Palácio dos Festivais.
Porém, é compreensível que diretores, produtores e atores se alonguem nessas palavras de apresentação, ora demonstrando orgulho, alegria ou até nervosismo por estarem lançando nacionalmente suas obras em Gramado, ora desabafando sobre a dificuldade de fazer cinema no Brasil. Há de se ter paciência especialmente no caso dos curtas-metragens, em que os festivais constituem uma rara janela de exibição e um raro canal de comunicação.
Os dois curtas deste sábado foram Último Domingo (RJ), de Joana Claude e Renan Barbosa Brandão, e Benzedeira (PA), de Pedro Olaia e San Marcelo. O primeiro é livremente inspirado em trecho do livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, protagonizado por Jéssica Ellen e belamente fotografado em preto e branco por Fernando Macedo, mas nada apaixonante. O segundo apresenta um personagem rico — Manoel Amorim, conhecido como Maria do Bairro, a "bicha preta" dedicada a curar o corpo e a alma dos outros — que merecia um roteiro mais estruturado, quem sabe um pouco mais explicativo.
A equipe de O Clube dos Anjos foi a maior a subir ao palco — e olha que estava longe de completa. Estreante na direção de longas, o fluminense Angelo Defanti fez-se acompanhar pelas produtoras Bárbara Defanti, sua irmã, e Sara Silveira, gaúcha veterana em Gramado ("Tenho pelo menos 40 anos de festival"), pela montadora Livia Arbex (representando o time técnico, que inclui o diretor de fotografia português Rui Poças) e por Pedro Verissimo — representando seu pai, Luis Fernando Verissimo, autor do romance homônimo (1998) adaptado pelo próprio Defanti. Do elenco que forma uma Seleção Brasileira, marcaram presença Otávio Müller, André Abujamra (também responsável pela trilha sonora), Augusto Madeira e César Mello. Esse timaço conta ainda com Matheus Nachtergaele, Paulo Miklos, Marco Ricca, Ângelo Antônio e Samuel de Assis.
Com estreia nacional prevista para novembro, este é o primeiro longa baseado em uma obra de LFV, que já havia sido levado à TV e ao cinema em curtas como Maridos, Amantes e Pisantes (2008) e Feijoada Completa (2012), ambos dirigidos por Defanti, que adquiriu os direitos do livro em 2009 e filmou em 2018. No púlpito, o cineasta falou, primeiro, sobre a emoção de estar estreando O Clube dos Anjos na terra de Verissimo, escritor de quem se tornara "um estranho íntimo" quando tinha oito anos, ao ler um conto do volume 13 da antologia Para Gostar de Ler. Ao fim, em uma mistura de lamento e indignação, comparou o enredo da história — em que "homens hediondos", todos herdeiros, todos "crápulas" (como diz o personagem de Miklos), se reúnem periodicamente para praticar o pecado da gula — à situação do país, onde, no início de agosto, na região metropolitana de Belo Horizonte, um menino de 11 ligou para a polícia para pedir socorro porque sua família estava passando fome.
O protagonista, Daniel, é interpretado por Otávio Müller, que vai contando ao espectador — primeiro em um vídeo VHS, depois falando diretamente para a câmera — a história do seu grupo de amigos e de como conheceu Lucídio (Matheus Nachtergaele, se divertindo e nos divertindo com a mescla de afetação e secura do personagem). Este é um cozinheiro de mão cheia que, após seduzir Daniel com o relato de uma sociedade secreta em torno do fugu, um apetitoso mas perigoso peixe japonês (se o preparo não for perfeito, suas toxinas podem matar a pessoa em questão de horas), acaba convidado para conceber os banquetes que podem reatar os laços do chamado Clube do Picadinho.
Na entrada, O Clube dos Anjos exala frescor narrativo — vide o flashback no qual, à mesa, os personagens adolescentes são substituídos por suas versões adultas, vide a sequência na qual Daniel telefona aos amigos para fazer o convite do jantar: em vez de recorrer à montagem, o diretor Angelo Defanti reuniu todos no mesmo cenário, só mudando de ambiente. Ambas as ideias nasceram da combinação entre a inspiração em peças teatrais de Aderbal Freire Filho e restrições orçamentárias, disse o cineasta no debate realizado na manhã deste domingo na Sociedade Recreio Gramadense. A partir do prato principal, ou seja, a partir do momento em que um dos confrades amanhece morto, o filme vai pouco a pouco se tornando reiterativo e previsível. E, no retrogosto, vai sumindo o sabor de crítica à elite e o subtexto político, realçado nos duelos verbais e quase físicos entre João (Augusto Madeira), que é "de esquerda", e o conservador Pedro (Marco Ricca), e em situações como a André (Cesar Mello), que é o único negro da patota — portanto, está sempre sendo "esquecido", apagado, menosprezado.
Já a sobremesa servida na segunda noite do Festival de Gramado foi altamente prazerosa. Escrito e dirigido pelos estreantes Nicolás Branca e Martín Barrenechea, 9 gira em torno de Christian Arias, um jovem e talentoso atacante que defende a seleção do Uruguai e está em tratativas para trocar de clube, saindo de Portugal rumo à cobiçada Premier League, da Inglaterra. Sem mostrar um estádio nem reencenar uma partida (com exceção de uma única — e algo violenta — pelada), é um dos melhores filmes sobre futebol.
Talvez porque 9, como disse Barrenechea para mim na saída do Palácio dos Festivais, não seja exatamente sobre futebol.
Os diretores focam nos bastidores, na vida não raro oculta desses garotos de 18, 20 anos que muito rapidamente atingem o status de astro nos gramados. Longe da bola, contudo, será que sabem driblar as adversidades? Conseguem tabelar com outras pessoas? Quais são os gols que gostariam de marcar?
O pontapé inicial é o desembarque de Christian (interpretado por Enzo Vogrincic) no aeroporto de Montevidéu, onde é assediado pela imprensa e pela torcida. Dentro do carro, ele continua calado diante de um turbilhão, agora por conta de uma conversa telefônica do seu empresário, Damián (Rogelio Gracia), na qual a todo instante quer se meter seu pai, Óscar — papel de Rafael Spregelburd, de O Homem ao Lado (2009). Algo de ruim aconteceu em um jogo do Uruguai contra a Colômbia, acarretando em uma suspensão e demandando, no mínimo, um pedido de desculpas públicas por parte de Christian e uma avaliação psicológica do jogador.
Aos poucos, os cineastas vão revelando o acontecido e os possíveis motivos por trás do episódio. Igualmente aos poucos, amparados pelas ótimas atuações de Vogrincic (que mesmo em um papel introspectivo consegue transmitir um tanto de sua angústia) e Spregelburd (mais explosivo, mas também capaz de momentos nuançados), vamos entendendo melhor a personalidade do craque uruguaio e a complicada relação com o seu pai. Aí está: 9 não é exatamente um filme sobre futebol, mas um filme sobre pais e filhos, um filme sobre sonhos paternos que impõem prazeres e privações justamente na fase de experimentação da vida, um filme sobre um jovem que, por vontade própria ou graças a um empurrão alheio, empreende uma jornada em busca de identidade e maturidade.