O diretor islandês Baltasar Kormákur trocou as paisagens geladas de seu país (cenário da série policial Trapped, criada por ele em 2015) e da montanha mais alta do mundo (na aventura Evereste, também de 2015) pela savana africana em A Fera (Beast, 2022), filme estrelado por Idris Elba e um leão digital que estreia nos cinemas nesta quinta-feira (11). O choque térmico não fez muito bem.
Dada a previsibilidade do roteiro escrito por Ryan Engle (que trabalhou nos scripts de Sem Escalas e O Passageiro, ambos protagonizados por Liam Neeson) a partir de uma história de Jaime Primak Sullivan, A Fera se mostra um filme morno, provocando calor apenas em raros momentos dos seus 93 minutos de duração. Aliás, vira bicho manso na comparação com O Predador: A Caçada, um título aparentado que entrou em cartaz na plataforma Star+ na sexta-feira passada (5).
A Fera é uma espécie de cruza entre A Sombra e a Escuridão (1996), em que o diretor Stephen Hopkins reconstitui a história de dois leões que em 1898, em região próxima ao Rio Tsavo, no Quênia, mataram vários trabalhadores que estavam construindo uma ferrovia, e Predadores Assassinos (2019), terror de Alexander Aja no qual uma jovem e seu pai ferido precisam lidar com jacarés gigantes que invadiram a sua casa durante um furacão na Flórida.
Um dos poucos destaques do filme é a direção de fotografia assinada por Philippe Rousselot, ganhador do Oscar por Nada É para Sempre (1992) e indicado por Esperança e Glória (1987) e Henry & June (1990). O veterano francês não tem medo do escuro: é no breu que A Fera começa, acompanhando um grupo de caçadores ilegais à espreita de um bando de leões.
— Um deles escapou — diz um dos criminosos, logo após a matança. — E é dos grandes — sustenta, apontando para uma pegada. — Temos de capturá-lo, ou ele virá atrás de nós.
Bem: devo dizer que costumo torcer para os animais nos duelos entre o homem e a natureza, especialmente quando, em nome do progresso da civilização, o ser humano adota a barbárie contra o mundo selvagem (vide a caça às baleias retratada, por exemplo, no mais ou menos recente No Coração do Mar). Em A Fera, o roteiro até dá motivação para a vingança leonina!
Só que a coisa vira o fio, é claro — afinal, como em Jurassic World: Domínio (2022), este é um filme que "monsteriza" os animais — e no meio do caminho o leão depara com uma família inocente: o médico de Nova York Nate Samuels (papel vivido com o habitual carisma por Idris Elba) e suas filhas adolescentes, Meredith (Iyana Halley) e Norah (Leah Jeffries). O trio viajou para uma região próxima a Polokwane, na África do Sul, com o objetivo de visitar a cidade natal da mãe, que morrera de câncer. Ela e Nate estavam separados no momento de sua morte, então a jornada africana é como uma espécie de catarse e reconciliação — portanto, antes de o bicho literalmente pegar, haverá um pouco de roupa suja a ser lavada.
Na savana, Nate e as filhas têm o guia perfeito para um safári: Martin (o sul-africano Sharlto Copley, protagonista de Distrito 9 e Chappie), amigo de infância da esposa do médico e um dos responsáveis pela proteção de um santuário animal. Martin tem uma conexão forte com os leões, a ponto de se deixar abraçar por dois deles. Por isso, ele não demora a sentir que há algo perverso na índole do felino computadorizado que passa a cercar e a atacar os quatro personagens de carne e osso.
O leão é bastante crível, a ponto de enxergarmos nele os traços psicológicos de um personagem. Mas por que, em um contexto de espécies cada vez mais ameaçadas de extinção e de crescimento da caça ilegal na África (como reflexo da crise provocada pela pandemia no turismo), gastar uma provável fortuna em efeitos visuais para gerar um animal condenado a despertar o pânico, e não o acolhimento?
Em entrevista ao site da revista britânica Empire, o diretor Baltasar Kormákur tentou justificar:
— Muitas pessoas se desconectaram da natureza, e nós precisamos da natureza. Também estamos enfrentando essa crise de mudança climática, aquecimento global. Uma parte muito importante da história é que este leão, esta fera, foi programado por caçadores furtivos. Seu orgulho foi retirado. Não estamos culpando os leões por isso. O que o filme está tentando dizer é que não importa quem de nós trata mal a natureza, a natureza vai se vingar de todos nós. Se não cuidarmos das mudanças climáticas, um tsunami não vai pegar só quem não usou canudos de papel, sabia? Somos todos nós, certo? É o mesmo com os leões: se forem capturados e os bandos forem mortos e maltratados, eles atacarão. Eles vão criar um inimigo, que é o ser humano.
Bonito no discurso, mas na prática A Fera é só mais um filme em que o ser humano precisa lutar pela sobrevivência onde talvez não devesse ter colocado os pés.