Logo no começo de Assassino Sem Rastro (Memory, 2022), filme em cartaz desde quinta-feira (9) em seis cinemas de Porto Alegre — Cineflix Total, Cinemark Ipiranga, Cinemark Wallig, Cinépolis João Pessoa, Espaço Bourbon Country e GNC Praia de Belas —, um velho amigo diz ao protagonista interpretado por Liam Neeson, chamado de Alex Lewis, mais um dos homens brutais mas com princípios morais que o ator norte-irlandês vem interpretando já há uns 15 anos:
— Caras como nós não se aposentam.
Esse sujeito está falando do ofício de matador de aluguel, mas o comentário serve para o próprio Neeson, 70 anos completados em 7 de junho. Após concorrer ao Oscar de melhor ator por A Lista de Schindler (1993) e ganhar a Copa Volpi por Michael Collins (1996), no Festival de Veneza, ele operou uma transformação na carreira ainda mais tardia do que a de Charlize Theron, alçada ao posto de heroína dos filmes de ação depois dos 40 anos. Neeson já tinha 56 anos quando estrelou Busca Implacável (2008), aquele deste antológico monólogo ao telefone:
— Eu não sei quem você é. Eu não sei o que você quer. Se está em busca de resgate, saiba que não tenho dinheiro. O que eu tenho são habilidades muito específicas, habilidades que eu adquiri ao longo de uma carreira muito longa. Habilidades que fazem de mim um pesadelo para pessoas como você. Se você libertar minha filha agora, encerramos o assunto. Não vou te procurar ou te perseguir. Mas se você não a libertar, eu vou te procurar, eu vou te achar e eu vou te matar.
Nesse título dirigido pelo francês Pierre Morel e bem-sucedido nas bilheterias (foram US$ 226,8 milhões arrecadados, quase 10 vezes o custo de produção), o norte-irlandês estabeleceu o tipo de personagem que inscreveu o seu nome na galeria de astros do gênero: o ex-agente secreto ou ex-policial que precisa voltar à ativa e tomar medidas extremas quando sua família corre perigo. Contribuem para o fascínio — ou o espanto — exercido por Neeson suas características físicas (1m93cm de altura, o nariz grande e torto desde que o quebrou nos tempos de boxeador, na juventude), a voz grave, um olhar capaz de exalar tanto a fúria quanto a frieza e um meio sorriso que contrasta as barbaridades cometidas com suas próprias mãos.
Com algumas variações, de lá para cá Neeson protagonizou uma dezena de histórias de violência e vingança. Entre elas, estão as duas sequências da franquia Busca Implacável (em 2012 e em 2014), o ótimo, mas cruel Vingança a Sangue Frio (2019) — cartaz do Domingo Maior neste fim de semana, na RBS TV — e quatro colaborações com o diretor espanhol Jaume Collet-Serra: Desconhecido (2011), Sem Escalas (2014), Noite Sem Fim (2015) e O Passageiro (2018). Em janeiro de 2021, o ator chegou a anunciar sua aposentadoria do gênero, alegando dificuldades, pelo peso da idade, para fazer as cenas de luta. Mas não durou muito esse afastamento, vide Na Mira do Perigo (2021), Agente das Sombras (2022), este Assassino Sem Rastro e os vindouros In the Land of Saints and Sinners, de Robert Lorenz, e Thug, de Hans Petter Moland. Ele também será visto como o célebre detetive criado pelo escritor Raymond Chandler em Marlowe, de Neil Jordan.
Escrito pelo estadunidense Dario Scardapone, roteirista de quatro episódios do seriado Justiceiro (2017-2019), a partir do filme belga De Zaak Alzheimer (2003), Assassino Sem Rastro tem direção de outro sujeito que parece ter desistido da aposentadoria. O neozelandês Martin Campbell, realizador de 007: GoldenEye (1995), A Máscara do Zorro (1998) e 007: Cassino Royale (2005), está com 78 anos. Após o famigerado Lanterna Verde (2011), ele ficou um bom tempo afastado do cinema, assinando dois telefilmes e um episódio de série. Voltou com O Estrangeiro (2017), depois fez A Profissional (2021) e agora consta que está pré-produzindo o piloto do seriado Blake's 7.
Em uma ironia com o título original — memória, em inglês, por conta de o personagem principal estar lidando com sinais de Alzheimer — e com o nome dado no Brasil, Assassino Sem Rastro é um filme esquecível, desses que não deixam vestígios. A trama foi batida em um liquidificador, misturando todos os clichês possíveis. Além do matador bonzinho encarnado por Neeson, temos o detetive que cometeu uma rateada (papel do australiano Guy Pearce), a policial engraçadinha (a britânica de ascendência indiana Taj Atwal), o tira esquentado (o mexicano Harold Torres), a empresária poderosa que comanda uma organização criminosa (a italiana Monica Bellucci) e até a garota de programa de hotel (a inglesa Stella Stocker). Temos a "última missão" que se torna uma tremenda enrascada — seja por coração mole, seja, por um código de ética, seja por uma pisada na bola —, o protagonista que se sente traído pela própria mente e uma trama que envolve tráfico e exploração sexual de crianças e uma vingança. E por mais que seja sempre gostoso ouvi-las na voz de Neeson, as frases de efeito soam regurgitadas: "Se eu estou aqui, a coisa já foi muito longe", "Quanto menos você souber, melhor", "Eu quero acreditar que você é o homem bom. Eu sou o homem mau".
Se pelo menos Assassino Sem Rastro tivesse cenas de ação tensas ou eletrizantes, daria para relevar um pouco a mesmice da história. Mas até nisso a direção foi ora sem inspiração, ora preguiçosa. Caras como Liam Neeson não se aposentam, mas podiam arranjar empregos melhores.