Na edição que comemora os 50 anos do Festival de Cinema de Gramado, o troféu Eduardo Abelin — a segunda homenagem mais importante do evento — celebrou o diretor Joel Zito Araújo, mineiro de 67 anos. A distinção foi entregue na noite desta segunda-feira (15), no Palácio dos Festivais.
— Seguindo as tradições africanas, eu não poderia começar a minha fala sem referenciar os mais velhos, os ancestrais — disse Joel Zito após receber o troféu das mãos do crítico Marcos Santuário, um dos curadores do Festival de Gramado.
— Quero reverenciar Oscarito e Grande Otelo, dois gênios da comédia brasileira, e neste ano de perda, quero reverenciar dois nomes do cinema negro: meu amigo Milton Gonçalves e o Sirmar Antunes, que o RS perdeu. Quero também reverenciar os meus ancestrais. Eu, por felicidade do destino, sou filho das três raças que constituem o Brasil. Meu avô materno, que foi estivador no Porto de Salvador, depois virou possivelmente o único fazendeiro negro no sul da Bahia. Os negros não trouxeram só a capoeira e a feijoada. Trouxeram a cultura civilizatória. Dele eu herdei isso e a capacidade de se impor. Minha vó foi de origem indígena. Tinha encanto quando ela tirava piolho da minha cabeça, era um ritual. Mas ela também era muito melancólica, depois descobri que por causa do extermínio dos indígenas. Herdei dela a melancolia e a revolta. Do meu outro avô, que foi tropeiro, herdei uma tranquilidade e o timbre de voz. A minha vó Cotinha era uma mulata que desejava ser branca. Herdei as suas contradições. Portanto, trago na arquitetura do meu corpo e da minha mente essas origens, que me ajudam a interpretar o Brasil. Mas o meu cinema eu devo à minha mãe, que começou como lavadeira, depois cumpriu um destino da mulher negra brasileira, ser empregada doméstica. Depois, funcionária em uma fábrica de copos. Meu cinema é para que as mulheres negras que nascem no Brasil não sigam o roteiro que ela teve de seguir — afirmou.
O troféu Eduardo Abelin foi criado para homenagear cineastas — o nome vem de um precursor do cinema gaúcho, que entre 1925 e 1933, na companhia de José Picoral, realizou seis filmes de ficção em Porto Alegre. Entre os vencedores, estão Carlos Reichenbach, Roberto Farias, Tizuka Yamasaki, Hector Babenco, Otto Guerra e Carla Camurati. Também já houve prêmios a entidades, como a Casa de Cinema de Porto Alegre, em 2007, e o Canal Brasil, em 2013.
Joel Zito discute as questões raciais do país desde sua estreia, com o média-metragem Memórias de Classe (1989), um docudrama sobre o movimento operário paulista. O diretor perenizou seu nome na história do cinema nacional ao lançar o documentário A Negação do Brasil (2000, indisponível no streaming), eleito o melhor filme no festival É Tudo Verdade e vencedor do prêmio de roteiro na mostra de Recife.
Trata-se de uma retrospectiva das telenovelas brasileiras, analisando os papéis destinados aos atores negros — coadjuvantes, estereotipados, submissos. Aparecem, entre outros atores, Léa Garcia, Milton Gonçalves, Ruth de Souza, Nelson Xavier e Zezé Motta. Coincidentemente, saiu no mesmo ano em que o estadunidense Spike Lee jogou um olhar semelhante para Hollywood, em A Hora do Show.
— Fiz o documentário em uma época na qual o Brasil ainda estava encantado pela ideia de democracia racial, o que prejudicava os negros e os indígenas — relembrou Joel Zito na entrevista coletiva realizada à tarde, no Museu do Festival, com mediação do jornalista Roger Lerina. — Ajudei a criar um cinema negro no Brasil. Hoje temos gente de diferentes gerações, como a Camila de Moraes (gaúcha diretora do premiado documentário O Caso do Homem Errado, de 2017). Uns me chamam de mestre, acho meio estranho, mas tenho orgulho do que fiz.
Para o cineasta, de lá para cá houve um "avanço positivo" na sociedade brasileira e na indústria cinematográfica. Mas ele fez uma ressalva:
— As novas gerações reconhecem que existe racismo no Brasil e a importância da diversidade no cinema. Estão sendo incorporados personagens e profissionais negros. Aumentou a visibilidade. Mas acho que ainda estamos muito longe de representar de forma correta o Brasil, onde, segundo o IBGE, há 56,1% de pretos e pardos. Não é isso o que se vê nas telas, né? Ainda somos muito apegados a uma estética colonizadora, ao projeto de branqueamento do país.
Isso, afirmou Joel Zito, não tem impacto apenas na esfera cultural:
— Se continuarmos fazendo negócios somente com a Europa e os Estados Unidos, vamos continuar sendo colônia. O Brasil precisa circular mais pelo mundo. Você não faz ideia do quanto o Brasil perde por não negociar mais com os países da África.
"Filhas do Vento"
Com uma ficção, Joel Zito já havia feito história no Festival de Gramado. Filhas do Vento (2004, em cartaz no Globoplay) é um melodrama ambientado em Lavras Novas, município mineiro de população majoritariamente negra. A morte do pai, o severo Zé das Bicicletas, provoca o reencontro das irmãs Cida, que fugira da família para ser atriz, e Ju, que havia ficado em casa. Essas personagens são encarnadas por Taís Araújo e Thalma de Freitas na juventude e por Ruth de Souza e Léa Garcia na maturidade. As quatro atrizes foram premiadas em Gramado, onde Filhas do Vento também faturou os Kikitos de melhor diretor, ator (Milton Gonçalves), ator coadjuvante (Rocco Pitanga) e o troféu da crítica. Não sem polêmica.
O diretor e os seis atores chegaram a anunciar a intenção de devolver os Kikitos. O motivo? As declarações do presidente do júri, o crítico paulista Rubens Ewald Filho, afirmando que a premiação a eles foi política, "totalmente planejada": "Alguém acha que foi à toa que demos prêmios para seis atores negros em um Estado como o Rio Grande do Sul, sempre acusado de desprestigiar o negro?".
Na coletiva desta segunda-feira, Joel Zito disse que aquela "grande bobagem" dita por Ewald refletiu a reação da classe média branca às cotas raciais nas universidades. Naquele mesmo ano de 2004, a Universidade de Brasília (UnB) havia se tornado a primeira instituição federal a implantar a política.
— Até então, o racismo parecia ser um problema apenas dos negros. A partir da questão das cotas, passou a haver uma discussão nacional — comentou o cineasta.
Novos projetos
Os trabalhos mais recentes de Joel Zito Araújo foram o documentário Meu Amigo Fela (2019, disponível no Globoplay), sobre o músico nigeriano Fela Kuti (1938-1997), a comédia dramática O Pai da Rita (2021, para aluguel em Apple TV, Google Play e YouTube), estrelada por Ailton Graça e Jéssica Barbosa, e a minisérie documental PCC: Poder Secreto (2022), que estreou em junho na HBO Max.
Os títulos dão conta da diversidade de gêneros, formatos e temas do diretor, que, em O Pai da Rita, por exemplo, não abordou diretamente o racismo, mas tratou do assunto ao mostrar que o Bixiga, bairro de São Paulo tradicionalmente associado à imigração italiana, nasceu como uma comunidade negra, a partir do Quilombo Saracura:
— Não precisamos fazer apenas filmes de denúncia sobre o racismo, que é cruel e mata diariamente. É um horror o que acontece no Rio de Janeiro, onde toda semana há uma chacina de jovens nas favelas.
Os próximos projetos do diretor são documentais. Fará uma série sobre racismo estrutural e outra sobre cinema africano, para difundi-lo no Brasil (a propósito: Joel Zito integra a diretoria da federação pan-africana de cinema). Também está nos planos um documentário sobre o grupo teatral Brasiliana, que nos anos 1950 levou o folclore negro para o Exterior. E o sonho de sua vida é uma ficção baseada em Tristes Trópicos (1955), ensaio de Claude Lévi-Strauss sobre comunidades indígenas brasileiras.