Foi uma maratona a terceira noite de competição no 51º Festival de Cinema de Gramado, nesta segunda-feira (14). Passei seis horas e 20 minutos dentro do Palácio dos Festivais, somando o atraso habitual para o início da sessão, os protocolos de apresentação, os intervalos, os comerciais dos patrocinadores (exibidos três vezes), as falas das equipes e o tempo de duração de cada atração: os curtas-metragens Sabão Líquido (20min55s) e Jussara (8min40s), o longa de ficção Mais Pesado É o Céu (98min), o documentário Memórias da Chuva (77min) e o primeiro episódio da série Cangaço Novo (51min), apresentado fora da disputa.
A epopeia começou com o bom curta gaúcho Sabão Líquido, de Fernanda Reis e Gabriel Faccini, que na mostra regional receberam o Prêmio Assembleia Legislativa de melhor direção. Ambos são estreantes, e a produção foi realizada com poucos recursos financeiros, mas com acertos técnicos, como a escolha dos planos e a sonoplastia, além do roteiro si.
Único representante do Estado na competição nacional, é um filme que consegue ser político e intimista ao mesmo tempo. Embora tenha sido feito anteriormente, espelha os recentes casos de trabalho análogo à escravidão descobertos na Serra ao contar a história de um imigrante sem nome que é trazido clandestinamente para o interior do RS, onde, alojado em um trailer no meio de uma floresta, vai fabricar sozinho sabão líquido. O personagem não demora a sentir os efeitos da solidão — e também da ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência do Brasil.
O segundo título da noite foi o longa-metragem Mais Pesado É o Céu, do cearense Petrus Cariry, de O Grão (2007), Mãe e Filha (2011) e A Praia do Fim do Mundo (2021). A epígrafe escolhida pelo diretor serve de alerta para o clima opressivo e sufocante (mas jamais acelerado) da narrativa: "Vivemos submersos no fundo de um oceano de ar", do físico italiano Evangelista Torricelli (1608-1647).
Estamos no sertão do Ceará, nas proximidades da velha Jaguaribara, município que, na virada dos anos 1990 para os 2000, foi abandonado para a construção de uma represa. Às margens do açude Castanhão, Teresa (Ana Luiza Rios, a Gilda de O Clube dos Canibais) resolve acolher um bebê que está chorando dentro de um barco. Sua trajetória vai se cruzar com a de Antonio (Matheus Nachtergaele, em outra grande atuação aqui em Gramado, depois de O Clube dos Anjos), que vive de pequenos e insalubres bicos, como limpar a bosta de um caminhão transportador de vacas. "Na hora H, a gente faz o que tem de fazer e não fica choramingando", ele diz a certa altura.
Esses dois personagens compartilham lembranças boas da cidade inundada, talvez o único combustível emocional para enfrentar a dureza da vida. Que é mais cruel com Teresa, ameaçada, agredida e humilhada pelos caminhoneiros a quem atende como prostituta de beira de estrada. Por falar nisso, entende-se mostrar, sem edulcoração, os perigos aos quais ela acaba se sujeitando, mas acho que o filme exagera na exposição do seu sofrimento.
Por outro lado, a direção de fotografia assinada pelo próprio Petrus Cariry é belíssima — não foi à toa que Nachtergaele, no palco do Palácio dos Festivais, disse que o cineasta é "um poeta a cada plano". A trilha sonora composta por João Victor Barroso emoldura com gravidade e imponência os quadros em movimento pintados por Cariry.
Após o primeiro intervalo, assistimos ao único curta de animação da disputa, o baiano Jussara, de Camila Cordeiro Ribeiro, e ao primeiro dos cinco documentários que competem pelo Kikito da categoria. Trata-se de um filme complementar a Mais Pesado É o Céu. Aliás, como disse um colega de imprensa sentado a meu lado, Cristiano Mentz Aquino, teria sido mais interessante ver Memórias da Chuva, de Wolney de Oliveira, antes da ficção de Cariry, para compreender melhor a ligação afetiva de Teresa e Antônio com Jaguaribara.
Porque Memórias da Chuva reconstitui a incrível e triste história da destruição do município interiorano de 10 mil habitantes localizado a 226 quilômetros de Fortaleza. Com imagens em vídeo registradas por antigos moradores e cenas de reportagens, conhecemos o cotidiano simples, mas feliz de Jaguaribara, que foi sacudida por uma decisão muito mais política do que científica, conforme os depoimentos colhidos pelo filme. Sim, acabar ou pelo menos minimizar a seca no Nordeste sempre foi uma urgência, mas os governantes que resolveram construir o Castanhão ignoraram pareceres contrários de engenheiros.
A população se mobilizou e protestou, mas não teve sucesso. Logo todos tiveram de deixar suas casas e se mudar para Nova Jaguaribara. Uns não reclamam, pois suas vidas realmente melhoraram. Outros lamentam até hoje, e algumas famílias jamais receberam suas indenizações. A nova cidade também afastou demais os vizinhos e não prosperou.
Wolney de Oliveira é extremamente habilidoso em conjugar os aspectos mais sentimentais com uma visão macro, que inclui a discussão sobre as mudanças climáticas e o consumo de água pelas indústrias geradoras de energia. De certa forma, seguindo a ideia do curador Caio Blat de que os filmes do Festival de Gramado conversam entre si, estabelece um diálogo com Retratos Fantasmas, mistura de documentário e ensaio assinada pelo pernambucano Kleber Mendonça Filho e exibido fora de competição no Palácio dos Festivais. Esta obra também é sobre um tempo que morreu (no caso, o dos cinemas de calçada). A propósito: como vemos em uma das passagens mais marcantes e doídas de Memórias da Chuva, os primeiros habitantes de Nova Jaguaribara foram os mortos, cujos restos foram retirados dos túmulos e transportados em urnas para o novo cemitério.
Por fim, pela primeira vez na cinquentenária história do evento, o Festival de Gramado apresentou uma série: Cangaço Novo, produção dirigida por Aly Muritiba (dos premiados filmes Ferrugem, Jesus Kid e Deserto Particular) e Fábio Mendonça que estreia no dia 18 de agosto no Amazon Prime Video. A trama escrita por Eduardo Melo e Mariana Bardan gira em torno de Ubaldo (interpretado por Allan Souza Lima), um bancário de São Paulo que acaba de ser demitido. Ele resolve viajar para o Ceará depois de descobrir, em uma carta que o pai, internado no hospital, havia escondido, que tem direito a uma herança. No sertão, descobre que também tem duas irmãs: a agricultora Dilvânia (Thainá Duarte), que o recebe com um misto de espanto e carinho, e a bandida Dinorah (Alice Carvalho), que o repele.
O trio de atores está muito bem, especialmente Carvalho, bem definida como uma "força da natureza" por Malu Miranda, chefe da divisão da conteúdo original brasileiro do Amazon Studios, presente no Palácio dos Festivais. Mas seus personagens não me comoveram, não me motivaram a acompanhar a série, que parece ser apenas mais uma das tantas histórias de ladrões que pululam no streaming, com a diferença do cenário e do sotaque nordestinos. Confesso a vocês que só não peguei no sono por causa da música alta, dos gritos e do barulho de socos e tiros.