Ao terminar de ver Bom Dia, Verônica, confirmei minha opinião formada no primeiro episódio desse seriado policial brasileiro da Netflix. A grande história contada sob a direção geral de José Henrique Fonseca não é a da protagonista, a escrivã encarnada pela atriz gaúcha Tainá Müller, mas a de Janete, a sofrida esposa do oficial da Polícia Militar Cláudio Brandão — os dois interpretados esplendidamente por Camila Morgado e Eduardo Moscovis.
Sei que a série de oito episódios apenas manteve o nome do livro em que se baseia, escrito por Raphael Montes e pela criminóloga Ilana Casoy sob o pseudônimo Andrea Killmore. Mas acho que um título mais condizente e mais intrigante (Bom Dia, Verônica não me vende mistério nem perigo) seria Voa, Passarinha. Entendedores entenderão — de qualquer modo, aviso que daqui em diante PODE HAVER SPOILERS.
O estilo narrativo das duas tramas da série é propositadamente distinto, mas às vezes parece que estamos assistindo mesmo a duas séries distintas.
Em uma, a que considero principal, Janete convive com um monstro em casa. O marido não faz mal apenas a ela, com as privações (celular é proibido, por exemplo), a pressão para que tenha um filho ("Um filho meu", ele enfatiza) e a iminente violência física. Brandão também é um serial killer de mulheres, que são torturadas antes de morrer: sob o olhar de Janete, com a cabeça dentro de uma caixa — ou uma espécie de gaiola —, as vítimas são içadas por ganchos, assumindo a forma de pássaros. O simbolismo é poderoso: o homem como caçador, a mulher como presa.
Na outra série dentro da série, Verônica fica abalada pelo suicídio de uma mulher cometido dentro da delegacia. Enfrentando certa resistência interna, ela começa a investigar um sujeito que, depois de marcar encontros em um site, aplicava um golpe nas suas vítimas: roubava dinheiro e pertences, tirava fotos delas nuas e queimava, por meio de um entorpecente, suas bocas. O caminho de Verônica vai acabar se cruzando com o de Janete.
A trama da escrivã reúne clichês e improbabilidades. Há, por exemplo, o delegado veterano que, às vésperas da aposentadoria, não quer saber de problemas, Carvana (Antônio Grassi), e o legista que sabe tudo, Prata (Adriano Garib). Verônica, por sua vez, para alguns pode ser uma personagem complexa — para mim, é apenas oscilante demais: ora exala fragilidade, muito por conta do trauma ligado ao pai, que também era policial, ora é faca na bota, a ponto de, pasmem, invadir sozinha a casa de Brandão e Janete. Esse tom de super-heroína não ornou com a interpretação de Tainá Müller. Mas o mais difícil de engolir é a mal explicada conspiração que ela descobre já para o final — eu avisei que haveria SPOILERS — e que envolve um orfanato onde crianças eram criadas para serem criminosas infiltradas nos Três Poderes. Pode ser que isso venha a ser detalhado em uma eventual segunda temporada, mas dado que não há garantia sobre isso, as conexões entre Carvana, a delegada Anita (Elisa Volpatto, outra atriz gaúcha) e Brandão deveriam ter sido mais desenvolvidas.
A trama de Janete e Brandão também deixou algumas pontas soltas ou não tão explícitas — alguns espectadores podem não atinar por que as vítimas dele eram todas do Maranhão, e o papel de sua avó no ritual dos assassinatos não foi de todo esclarecido —, mas isso em nada mancha o trabalho excepcional da direção e dos dois atores. Da fotografia e dos enquadramentos aos diálogos e gestos, tudo contribui para a construção de um ambiente de opressão, um microcosmo onde Bom Dia, Verônica reflete sobre os inúmeros relacionamentos abusivos que existem no país. O timing da série foi, infelizmente, perfeito: segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, houve um aumento nos casos de feminicídio durante a pandemia de coronavírus — com o distanciamento social, as mulheres ficaram mais expostas e por mais tempo a companheiros agressivos. Foram 648 no primeiro semestre, 1,9% a mais do que no mesmo período de 2019. Chamados à PM por episódios de violência doméstica cresceram 3,8%.
Na ficção, apesar de seus pesares, Bom Dia, Verônica tem o mérito inegável de denunciar e discutir a violência contra a mulher. Nesse sentido, até os silêncios da personagem de Camila Morgado são eloquentes, ora significando uma eternidade de humilhação e resignação, ora tomando a forma de um relâmpago de esperança — o sonho de a Passarinha voar, com asas próprias, para longe daquele inferno chamado de lar.