O que já era uma realidade antes ficou ainda mais urgente durante a pandemia. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) destacam que os casos de feminicídio cresceram 22,2%, entre março e abril deste ano em 12 Estados do país, mostrando que o isolamento social acabou ampliando a violência contra a mulher. Uma pílula de esperança é plantada em Bom Dia, Verônica, série brasileira lançada pela Netflix neste fim de semana. O cineasta José Henrique Fonseca assina a direção geral do projeto.
Interpretada pela gaúcha Tainá Müller, Verônica é uma escrivã da Delegacia de Homicídios de São Paulo e se destaca por ser inquieta. Logo após presenciar o suicídio de uma mulher ao lado de sua mesa no trabalho, tragédia relacionada a um abuso virtual, ela recebe a ligação de Janete (Camila Morgado). A dona de casa é vítima de violência de seu marido, o tenente Brandão (Eduardo Moscovis), que a obriga a participar de sessões de torturas a outras mulheres. Inconformada com os dois casos, Verônica decide agir.
— Ela toma um caminho perigoso, que é o da justiça com as próprias mãos, mas eu acredito nas instituições e que precisamos fortalecê-las para que a democracia contemple os oprimidos. A série é um grande grito por justiça, por justiça social, algo que não se vive nesse país — diz Tainá, em entrevista a GZH.
Após o episódio do abusador virtual, a história de Janete toma o eixo principal da série. A cada capítulo, o terror psicológico vivido pela personagem aumenta, o que pode provocar desconforto no espectador — tanto nas tomadas de tortura quando na brutalidade de Brandão. O cárcere privado de Janete, que não pode nem ter celular, desestabilizou Camila Morgado.
— Comecei a demonstrar um olhar perdido em algumas cenas, como se eu não soubesse quem era. No fim, o corpo mostra que ela não se importava nem mais com o julgamento, sem referências mesmo, de tão abalada que estava — recorda a atriz.
A protagonista, ao investigar um colega de corporação, acaba abrindo brechas que a levam na direção de uma misteriosa organização criminosa. Moscovis acredita que seu personagem acaba refletindo a realidade.
— Não me preocupei em moldar, porque ele me parece um pouco o estado da nossa polícia e como a sociedade está agora: tem uma cara pesada, disforme, meio decadente, sentada em valores antigos e nem um pouco recicláveis — destaca o ator.
Universal
A série adapta o livro homônimo de Andrea Killmore, pseudônimo adotado pela parceria entre o escritor Raphael Montes e a criminóloga Ilana Casoy. Lançada em 2016, a obra é inspirada em depoimentos reais coletados por Ilana em seu trabalho. Ela confessa se surpreender todos os dias com a maldade humana.
— O caso mais difícil é sempre o próximo, porque é como um sapato novo. Eu preciso entender o que a vítima sofreu e reconstruir isso, aos poucos. Na ficção, a capacidade de empatia funciona ainda mais, por isso me identifico com Janetes, Verônicas e tantas mulheres por aí — acredita Ilana.
Para transpor isso para a tela, Montes e Ilana ajudaram no desenvolvimento do roteiro e na produção da série e consideram que conseguiram manter a essência da obra literária, mesmo com algumas adaptações no enredo original. Para tornar o drama ainda mais universal, é perceptível algumas referências cinematográficas.
— Tem muito de Hitchcock na relação e nos diálogos do Brandão e da Janete, já que o cineasta mesmo dizia que para um suspense é necessário isso: “Estamos conversando, talvez exista uma bomba debaixo da mesa” — exemplifica Montes, que também cita Quentin Tarantino como referência em cenas de ação.
Na visão do escritor, o mais especial do projeto é saber que o seriado será distribuído para mais de 190 países pela plataforma de streaming, possibilitando que a temática toque intimamente nas pessoas de diferentes partes do mundo. Já pensando em uma continuação para o livro, a dupla destaca que todo o ciclo de violência é retratado na série, desde a verbal até a física.
— A violência doméstica não é nada novo, só estamos contando ela de outra maneira. A sociedade precisa dar visibilidade sempre que possível e tratar tudo isso junto. Só estamos dando mais um pontapé importante — finaliza Ilana.