Série policial brasileira recém-lançada na Netflix, Bom Dia, Verônica já é um grande sucesso na plataforma de streaming. Merecidamente. E não se deixe levar pelas primeiras impressões ao se deparar com alguns clichês, como o delegado (Antônio Grassi) que está prestes a se aposentar e esbraveja que não quer confusão para o seu lado. Faz parte do jogo. Ao longo da série, o espectador é levado a camadas mais profundas, e obscuras, da trama e também dos próprios personagens.
O primeiro episódio da série, inspirada no livro de Ilana Casoy e Raphael Montes, já começa em alta-tensão: uma mulher que foi vítima de um golpista na internet vai à delegacia de Homicídios de São Paulo e lá se suicida na frente de todos. Verônica Torres (Tainá Müller), que até então levava uma rotina burocrática como escrivã, tem sua vida transformada. E, ao mesmo tempo que se envolve pessoalmente na investigação desse golpista em série, chega até ela o caso de Janete (Camila Morgado), que sofre violência psicológica e física do marido, Brandão (Eduardo Moscovis), um serial killer. Só que Brandão é policial militar exemplar, com o qual ninguém quer nem pode mexer.
A própria Verônica carrega uma tragédia pessoal.
— A impressão que tenho é que a Verônica estava adormecida ali. Ela encontrou uma família (a personagem é casada e tem dois filhos), e aí se desdobrava entre a família e o trabalho. Mas sabe aquela pessoa que não está prestando muita atenção na própria vida? E, quando acontece esse suicídio na frente dela, foi um gatilho que a despertou. Por isso, acho muito bom o nome do livro e da série, que é Bom Dia, Verônica, acho que é o despertar dessa personagem. E, ao longo da trajetória dela, nesta primeira temporada, ela vai se transformando. Mas acredito que essa transformação vem de uma saturação, quase que um adoecimento de tamanha impotência que ela tem diante do sistema. Porque se sentir impotente é algo que adoece as pessoas — diz Tainá, em entrevista.
Num meio dominado por homens, Verônica acolhe os dois casos e encampa uma luta contra a violência contra a mulher e o abuso sexual, temas de grande relevância na série — e na vida real. Há até a figura da mulher com discurso machista representada pela delegada Anita (Elisa Volpatto).
— No Brasil, não há quem não tenha pelo menos ouvido um caso de violência contra a mulher. Se não presenciou, pelo menos soube de uma parente, uma avó, uma tia, uma vizinha. No país, se mata uma mulher a cada nove minutos, então, a relevância desse tema é com certeza um dos destaques, talvez por isso também esteja repercutindo tanto.
A atriz ressalta ainda o aumento de violência doméstica e feminicídio durante a pandemia, período em que, por causa do confinamento, as mulheres são obrigadas a ficar mais tempo com seus agressores e têm dificuldade de fazer denúncia.
— Tenho visto muito, nas minhas redes sociais, o desdobramento desse debate. A série não se encerra na série, naquela história ficcional. Há mulheres de ONGs apontando o que ali na produção tem como a escala da violência dentro de casa, tem gerado muitos debates. E isso é muito bacana.
José Henrique Fonseca, diretor-geral da série, concorda.
— A gente já sentia, já intuía um pouco todo esse interesse que teve em cima do tema. Não é que é um tema, é o tema. Então, é uma série que já vinha com uma pertinência enorme — afirma ele, por telefone, de Portugal, onde vive há dois meses com a mulher, a atriz Cláudia Abreu, e os filhos. Sobre a bem-sucedida transposição da obra literária para a produção audiovisual, Fonseca pondera:
— Você vai vendo, vai batendo bola com os roteiristas para ver a viabilidade daquelas questões todas, adaptações são feitas, porque você tem ali toda uma gramática cinematográfica que entra em cima da história: qual é o jeito que a gente acha que isso pode ficar legal, em qual tipo de ritmo que você quer que o espectador embarque. Isso é um esforço conjunto. É difícil você ter sucesso sem ter esses três bem encaminhados: roteiro, direção e atuação.
De fato, essa engrenagem funciona em sintonia na série. Roteiro e direção estão muito bem alinhados, imprimindo o suspense, a agilidade e as necessárias pausas aos detalhes na medida certa. Há cenas chocantes, sem serem explicitamente reveladas. E, para quem gosta do gênero policial, suspense, pode até encontrar pitadas de O Silêncio dos Inocentes e Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres.
O elenco, como um todo, é um capítulo à parte. Edu Moscovis faz um trabalho primoroso, e assustador, como o serial killer de aparência gentil. Camila Morgado confere a carga dramática de grande atriz à sua Janete. E Tainá constrói, de forma impecável, as nuances de sua heroína — ou anti-heroína?
Mesmo com trajetória marcada pelo ecletismo, José Henrique Fonseca é um expert no gênero policial, por habilidade e herança. Filho do escritor Rubem Fonseca, um dos grandes nomes da literatura policial brasileira, morto em abril, ele cresceu lendo e vendo o pai escrevendo seus célebres romances. Os dois chegaram a trabalhar juntos, no filme O Homem do Ano e na série Mandrake.
— A verdadeira herança que levo é essa herança cultural, que você tem que ser persistente com as coisas, trabalhar todo o dia — diz o diretor, que está na torcida pela segunda temporada de Bom Dia, Verônica.
A legião de fãs que série já tem também.