Enquanto conversava com a Revista Donna por telefone, a atriz Tainá Müller fez um desabafo contido.
– Tinha certeza de que 2020 seria o meu ano profissional – disse, referindo-se aos trabalhos adiados pela pandemia.
Mas, poucos dias depois, sua protagonista em Bom Dia, Verônica, série inspirada no livro de Ilana Casoy e Raphael Montes, confirmaria seu pressentimento pré-coronavírus. A produção da Netflix ficou entre as mais assistidas no Brasil no início de outubro. E levou seu nome ao centro de um debate em torno de um tema que ela já foi porta-voz nas redes sociais: “O Brasil é um país brutal para ser mulher”.
Como uma heroína que falha, chora e toma porrada – literalmente –, a porto-alegrense de 38 anos foi ao encontro de um de seus propósitos com o trabalho recém-lançado, como gosta de afirmar. Formada em Jornalismo e cursando pós-graduação em Filosofia Contemporânea, Tainá também procurou uma forma de colocar sua visibilidade a serviço da busca por soluções reais para problemas urgentes. Logo na segunda semana de distanciamento social, passou a reunir convidados em seu perfil no Instagram para falar de temas como feminismo interseccional, questões indígenas, saúde mental, meio ambiente, entre outros. Todos trabalhos fruto de uma inquietude que a acompanha nos estudos e nas relações pessoais – e que deve ganhar novo formato no YouTube.
Morando em São Paulo com o marido, o diretor Henrique Sauer, e o filho, Martin, de quatro anos, ela regressou à cidade onde viveu desde os tempos de modelo, depois de uma temporada de oito anos no Rio de Janeiro. Também por lá está reunida uma parte de seu núcleo familiar, as irmãs e apresentadoras Tuti e Titi Müller. Um trio unido e que ajudou a moldar outra de suas ambições:
– Quero interpretar mulheres que ajudam outras mulheres.
Como foi juntar o trabalho com um tema que lhe toca pessoalmente?
A questão das mulheres me toca desde sempre, é uma tecla que continuo batendo. Quando entrei neste trabalho, estava alinhada ao propósito. Tem alguns que são entretenimento puro e têm seu valor. Mas esse me pegou na veia. A temática fala do Brasil, um país brutal para ser mulher quando olhamos os números. São questões que me comovem muito, vim de um ambiente feminino, é um dos meu propósitos de vida interpretar mulheres que ajudam outras mulheres. Ela não é uma heroína incansável, comete erros, mas a intenção dela me move.
E dividir o set com a Ilana Casoy, em Bom Dia, Verônica?
A Ilana é uma mulher muito interessante. Eu sentava para almoçar com ela e perdia a hora. Ter ela e o Raphael Montes (autores do livro que originou a série) no set foi fundamental. Eles assistiam às cenas, ajudaram na construção viva da personagem, e também foram muito generosos. Entenderam que a Verônica que eles escreveram é um pouco diferente da minha versão. E sou feliz que eles estão felizes com essa construção coletiva.
Você comentou que acha estranho se ver na reprise de Flor do Caribe.
Eu estava na minha quarta novela, nem tinha mudado para o Rio, vivi tanta coisa depois. Quando se fala em 2013, você lembra aquela convulsão social, no que resultou a loucura toda. Me transformei, mas o mundo também. Meio que quem piscou, perdeu. Se você não muda seus valores, fica para trás.
Você está escrevendo um livro com o Piangers. Como está sendo?
Foi muito curioso. Escrevi um texto despretensioso para o Globo chamado Mãe Não Dorme, sobre aquela coisa de mãe de primeira viagem, em espanto no mundo em plena transformação. A Companhia das Letras me chamou, mas fiquei pensando que, para fazer livro sobre maternidade, deveria ter seis filhos (risos). Aí trouxeram o Piangers para criar como se fosse um diálogo, falando sobre como foi a nossa criação, e o que a gente passa ou não para os nossos filhos. Também o que queremos curar desta relação. Nos encontramos há mais de um ano, algumas vezes, gravamos as conversas e estamos lapidando. O livro vai e volta. É para, mais tardar, início do ano que vem. Só não está pronto por minha causa (risos).
Vocês se mudaram para São Paulo em função do trabalho e logo veio a pandemia. Como foi a adaptação?
Foi uma mudança grande, pois o Martin nasceu no Rio de Janeiro, estava acostumado com a cidade e os amiguinhos. Quando eu e meu marido fechamos trabalhos na cidade, também pensei que minhas irmãs estavam aqui e que seria bom ter essa base em São Paulo depois de oito anos no Rio. Quando começou o distanciamento social, Martin estava se adaptando na escolinha, foi um baque. Agora estamos com uma pedagoga que vem em casa para dar uma estimulada, para ele não ficar apenas no celular. E terminando reparos na casa que talvez não tivéssemos tempo de fazer.
O que estamos vivendo é consequência de uma sociedade que a gente inventou
Em que momento percebeu que era a hora de criar novos projetos neste período?
Quando paramos, falaram que seria por 15 dias, mas fui pesquisar e percebi que ia ser longo. Mas confesso que achei que ainda poderia voltar nesse ano. Passado o susto inicial, começou a bater a inquietude, a sensação de achar tudo muito sufocante, de ver as pessoas em situações delicadas, toda a condução desta crise. Foi então que, já na segunda semana, comecei as lives com pessoas que estavam pensando alternativas. O que estamos vivendo é consequência de uma sociedade que a gente inventou. E todo mundo sabe, mesmo que intimamente, que algo não deu certo. Em algum lugar falhamos, nos desconectando do meio ambiente que nos deu a vida. Tudo isso me fez refletir.
Como é feita a curadoria dos convidados?
A Djamila Ribeiro foi minha professora em feminismo interseccional, e achava que era urgente esse debate. Pensar a branquitude, não ficar só postando hashtags. Era um assunto em que estava muito ativa, já colocava em atividade na minha vida. Por coincidência, vieram os prostestos nos Estados Unidos logo depois. Nós artistas somos um pouco antena do mundo, pescamos o pensamento coletivo. O meu estudo sobre povos indígenas também entrou nas pautas. Estou tentando há um tempo descolonizar meu pensamento fazendo pós-graduação em Filosofia Contemporânea. A sociedade ocidental fez muita coisa incrível, mas, não porque quero ser diferentona ou boazinha, acho que temos que buscar outros caminhos. A humanidade tem uma variedade muito grande de pensamento que não pode ser excluída.
Quando que surgiu a ideia de pensar um formato para o YouTube das lives?
Foi muito legal o retorno das pessoas, e o Arruda (Mauricio Arruda, diretor) é meu amigo e tem um pesquisa muito parecida com a minha. Resolvemos organizar, fazer a coisa mais editada, bonitinha e colocar no Youtube. Ou, quem sabe, até pensar um projeto maior, para uma plataforma mais adiante.
Você fala que sua família sempre foi muito amorosa, mas com um modelo machista. Quando percebeu esta dinâmica?
Sempre tive um incômodo dessa coisa da nossa cultura, de os homens ficarem sentados bebendo cerveja, e as mulheres lavando a louça. E não entendia o porquê. Só tive ideia quando fiquei mais velha e, mais ainda, depois que tive filho, quando percebi que minha mãe criou sozinha, sem babá, três crianças. E tinha comigo, até então, o pensamento de que “minha mãe não trabalhava”. Quando percebi, veio um respeito profundo, porque realmente não sei como ela conseguiu. Comprei por muito tempo essa narrativa, hoje não compro mais.
A vulnerabilização das pessoas na rede social é muito importante, isso traz menos solidão
Como tem sido a criação do Martin a partir deste despertar?
Estou dando uma criação bem diferente para ele. Na minha cultura, via muito o “para de chorar, homem não chora”. Obviamente, o Martin não ouve essa frase. Fujo da masculinidade tóxica, não quero que ele seja um cara reativo. E está em tudo, desde a orientação do que ele tem que fazer quando apanha na escola, até os seus valores.
Você usa muito a internet para divulgar o seu trabalho. Como percebe a relação das pessoas com as redes sociais, falando principalmente das mulheres?
É muito da timeline que a gente escolhe pra si. A minha só tem mulher maravilhosa (risos). Mas, sim, a vulnerabilização das pessoas na rede social é muito importante, isso traz menos solidão. Não me interesso por quem só vende riqueza e perfeição. Sigo mulheres poderosas que estão na luta, influenciam a cultura de uma forma positiva. A rede social trouxe muita luz, muita democracia, mas também tem muita sombra, muita comparação. É importante pensar no que cada perfil lhe desperta.