Em 2005, quatro amigos que integravam o Clube de Cinema de Porto Alegre — João Pedro Fleck, Nicolas Tonsho, André Kleinert e Davi de Oliveira Pinheiro — viajaram para assistir a um festival na Cinemateca Uruguaya, em Montevidéu. Ainda no país vizinho, eles começaram a conversar sobre como seria legal se Porto Alegre tivesse um evento semelhante, principalmente um de gênero fantástico, aos moldes do Fantasporto, em Portugal, e de Sitges, na Espanha.
— Quando voltamos, propusemos uma pequena mostra, com 12 filmes, que aconteceu na Cinemateca Paulo Amorim e na saudosa Sala P.F. Gastal. Este foi o pequeno embrião deste grande monstro que se tornou o Fantaspoa — lembra Fleck, 41 anos, que assina com Tonsho a direção do Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre.
A palavra monstro alude tanto aos personagens que costumam povoar os títulos exibidos no Fantaspoa — embora o evento não se restrinja ao terror ou à ficção científica: há comédias, animações, policiais, documentários e até musicais — quanto ao tamanho da 20ª edição, que começa nesta quarta-feira (10) e vai até o dia 28 de abril. A partir de mil inscrições recebidas, o festival bate o recorde de filmes em exibição: são 114 longas-metragens _ 21 deles fazendo sua estreia mundial e 10 tendo sua primeira exibição fora do país de origem _ e 123 curtas.
Neste ano, a programação do Fantaspoa poderá ser conferida em quatro locais:
- Na Cinemateca Capitólio (Rua Demétrio Ribeiro, 1.085), com ingressos entre R$ 10 e R$ 16 (o Madrugadão, no dia 20, com quatro filmes, custa R$ 60), à venda somente em dinheiro e na bilheteria, uma hora antes de cada sessão;
- Na Casa de Cultura Mario Quintana (Rua dos Andradas, 736), com bilhetes entre R$ 14 e R$ 16 (clientes do Banrisul também tem direito a meia-entrada, desde que o pagamento seja com o cartão do banco);
- No Instituto Ling (Rua João Caetano, 440), com entradas a R$ 16 (as sessões musicadas saem por R$ 40);
- E no Cult Cinemas Victoria (Av. Borges de Medeiros, 445), a R$ 4.
As atrações desta quarta são duas sessões musicadas de As Mãos de Orlac (1924), de Robert Wiene, no Instituto Ling, com ingressos já esgotados. Toda a programação pode ser conferida no site fantaspoa.com
A seguir, Fleck relembra momentos marcantes e indica cinco títulos imperdíveis.
Quais foram as grandes lições do primeiro Fantaspoa, aquelas que vocês carregam até hoje?
A principal lição para nós é: não desistir e seguir acreditando naquilo que a gente acredita. Para nós, o Fantaspoa não é um festival de cinema, é parte integrante e essencial de nossas vidas, é o trabalho com que ficamos envolvidos durante 10 meses a cada ano, do qual tiramos parte de nosso sustento, mas, acima de tudo, é o momento que, por mais exaustos que estejamos, mais nos sentimos felizes e realizados. Então, acredito que ter um foco, que para nós sempre foi ser o principal festival de cinema fantástico da América Latina, e não abrir mão dele é o central. Enfrentamos muitas dificuldades e seguimos aqui.
Houve alguma ocasião em que vocês sentiram estar vivendo seu próprio filme de terror?
Quase todos os anos! O Fantaspoa é ao mesmo tempo o pior e o melhor para os seus realizadores. A cada ano temos que batalhar para conseguir patrocínio. Neste ano, devido aos recursos escassos, tivemos que legendar mais de 50 longas-metragens nós mesmos. Às vezes não sabemos se conseguiremos chegar ao final do festival devido à estafa que nosso corpo e nossa mente estão vivendo.
Vocês podem citar cinco momentos marcantes ao longo dessas duas décadas? Vale sessão de filme, convidado ilustre, debate emocionante...
1) A vinda de Luigi Cozzi (cineasta italiano, autor de Starcrash, Alien: O Monstro Assassino e Hércules, todos sob o pseudônimo Lewis Coates), em 2010, e a consequente realização do documentário sobre a sua vida. Este foi o primeiro convidado internacional de relevância que veio para o Fantaspoa e através dele trouxemos muitos outros, como Claudio Simonetti, Fabio Frizzi, Ruggero Deodato. Cozzi foi uma influência incrível para nós e esteve aqui duas outras vezes.
2) A presença de Stuart Gordon (diretor de Re-Animator e A Fortaleza), um dos "Masters of Horror" dos Estados Unidos,em 2011. Foi um dos convidados mais marcantes. Esteve em um churrasco na casa do meu irmão, cantou blues, elogiou meu pai dizendo que ele tinha um filho incrível...
3) O debate com o diretor russo Kirill Sokolov em 2022. Kirill, ao apresentar seu filme (Rasgue e Jogue Fora), disse que, estando vivendo os meses iniciais da guerra contra a Ucrânia, tudo o que ele podia pensar era que, em breve, estaria conosco no Fantaspoa por uma segunda vez. Isso era um alento que o mantinha focado.
4) A primeira vez em que ganhamos um patrocínio! Vendo o Fantaspoa agora, que é um festival com mais de 200 filmes e mais de cem convidados internacionais, quem não conheceu os primórdios do festival não faz ideia da situação que a gente vivia. Somente no sétimo Fantaspoa nós ganhamos algum tipo de patrocínio, e isso permitiu que profissionalizássemos cada vez mais o evento.
5) A primeira sessão musicada no Instituto Ling, de Nosferatu (1922), em 2022. A produção do Ling teve a brilhante ideia de fazer a projeção em duas telas, com os músicos no centro. A configuração segue até hoje e destaca igualmente o filme e os músicos. Foi muito importante porque tivemos acesso a um local espetacular e, assim, atingimos um novo público, de outra zona da cidade, que possivelmente não tinha, até então, participado do festival.
5 dicas de João Pedro Fleck no Fantaspoa
Com Amor e um Órgão Essencial (Canadá, 2023)
De Kim Albright. Em um mundo alternativo onde os corações são feitos de objetos e reprimir emoções é encarado como autocuidado, uma mulher solitária (Anna Maguire) arranca seu próprio coração pelo homem que ama, apenas para descobrir que ele o roubou.
Por que ver? "Um filme que desafia qualquer preconceito que as pessoas possam ter com o Fantaspoa, trazendo uma história de amor nunca antes contada." (Eu assino embaixo!)
Sessões na Cinemateca Capitólio, no dia 14/4, às 14h45min, e no dia 19/4, às 14h45min
Dark My Light (EUA, 2024)
De Neal Dhand. A investigação de Mitchell Morse sobre um assassino em série praiano se complica devido ao seu relacionamento em frangalhos com a esposa, um novo parceiro imprevisível e sua própria sanidade em declínio.
Por que ver? "Um filme de investigação que mexe com a cabeça do espectador, enquanto vemos a sanidade do personagem principal se esvaindo. Para mim, a première mundial favorita de 2024."
Sessões na Cinemateca Capitólio, no dia 19/4, às 20h30min (comentada pelo diretor), e no dia 21/4, às 14h45min
A Luta Invisível (Letônia, 2023)
De Rainer Sarnet. Um guarda na fronteira sino-soviética decide se tornar um monge após sobreviver a um ataque mortal, mas deve continuamente provar ao longo do caminho que é capaz de se tornar o homem iluminado que se propôs a ser.
Por que ver? "Um filme que é inesquecível e provavelmente o filme favorito da Letônia de qualquer espectador! Apreciadores de kung-fu, monges e da velha União Soviética não podem perder. E quem não gostar de nada disso, espero que se divirta tanto quanto eu."
Sessões na Sala Paulo Amorim, no dia 12/4, às 17h30min, e no dia 20/4, às 15h30min
Mais uma Vez (Pela Primeira Vez) (EUA, 2023)
De Boaz Yakin. O lendário dançarino de rua DeRay (Jeroboam Bozeman) cai do céu e se choca no corredor do lado de fora da porta de seu verdadeiro amor, a poetisa de spoken word Naima (Jennifer Merin).
Por que ver? "Com 30 anos de estrada, o diretor de Aviva, exibido no Fantaspoa de 2020, traz agora uma balada que mescla hip-hop, dança de rua e fantasia que fascina o espectador."
Sessões na Cinemateca Capitólio, no dia 16/4, às 20h30min (comentada pelo diretor), e no dia 20/4, às 14h45min
As Formas Complexas (Itália, 2023)
De Fabio D'Orta. Existe uma antiga vila onde pessoas desesperadas têm a oportunidade de reviver suas fortunas vendendo seus corpos para entidades misteriosas. Quando enormes e ancestrais criaturas emergem das profundezas das matas que cercam o local, uma série de eventos estranhos e sinistros leva três hóspedes improváveis a se unirem em uma fuga.
Por que ver? "O meu filme favorito da mostra Low Budget, Great Films (Pequenos Orçamentos, Grandes Filmes). Um filme barato com esta qualidade visual, estética e narrativa merece toda a atenção que possa ser dada."
Sessões na Sala Paulo Amorim, no dia 20/4, às 14h, e no dia 25/4, às 14h
Mais 5 filmes imperdíveis do Fantaspoa
The G (Canadá, 2023)
De Karl R. Hearne. Depois que um tutor corrupto coloca um casal em um lar de idosos para tomar posse de sua propriedade, a vovó Ann (Dale Dickey) sai em busca de vingança com a ajuda de sua neta Emma (Romane Denis).
Por que ver? Se temos Liam Neeson e Denzel Washington como heróis dos filmes de vingança, por que não podemos ter a sexagenária Dale Dickey? A atriz arrasa nesta abordagem neo-noir para um candente tema social (o dos idosos ludibriados pelos guardiões legais). Algumas de suas frases são antológicas: "Minha mãe dizia que soltar a raiva fazia viver mais. Ela morreu com 102 anos".
Sessões na Cinemateca Capitólio, no dia 27/4, às 18h15min (comentada pelo diretor), e no dia 28/4, às 16h30min
O Mal que nos Habita (Argentina, 2023)
De Demián Rugna. Os moradores de uma pacata cidade do interior recebem uma notícia alarmante: um homem infectado pelo diabo está prestes a dar à luz um demônio real. desesperados, os habitantes tentam escapar do local.
Por que ver? Se você não viu quando o filme estava em cartaz, ganha uma nova chance de ver no cinema a cena mais chocante dos últimos tempos e sentir a reação da plateia, elemento que agrega bastante à experiência de assistir a um título de terror.
Sessão no Victoria, no dia 27/4, às 17h (comentada pelo diretor)
Pandemonium (França, 2023)
De Quarxx. Após um acidente de carro, Nathan (Hugo Dillon) percebe que está morto e logo se vê diante de duas portas: uma leva para o Céu, a outra, para o inferno.
Por que ver? Apesar de parecer um lugar-comum, o limbo em que Nathan se encontra com outro morto, Daniel (Arben Bajraktaraj), é cenário de uma primeira parte sublime. Dá vontade de continuar na companhia desses dois personagens enquanto desbravamos um pós-vida visualmente impactante.
Sessões na Sala Paulo Amorim, dia 11/4, às 15h30min, e no dia 14/4, às 15h30min
Rio (Japão, 2023)
De Junta Yamaguchi. Durante a temporada de inverno em uma pousada centenária localizada em Kyoto, uma empregada do estabelecimento termina seu descanso perto de um rio próximo e volta ao trabalho _ apenas para se encontrar novamente no mesmo lugar.
Por que ver? No Fantaspoa de 2021, Yamaguchi foi premiado como melhor diretor por Dois Minutos Além do Infinito, uma espantosa combinação do tema da viagem no tempo com a técnica do plano-sequência (que tem sessão comentada neste sábado, às 20h, no Instituto Ling). Em Rio, o cineasta japonês volta a brincar com a temporalidade — entregar detalhes seria prejudicar a diversão.
Sessões na Cinemateca Capitólio, no dia 14/4, às 18h15min (comentada pelo diretor), e no dia 16/4, às 15h30min
Trenque Lauquen (Argentina, 2022)
De Laura Citarella. Laura, uma bióloga catalogando espécies de plantas em Trenque Lauquen, desaparece. Seu namorado, Rafael, e o colega Ezequiel partem em busca dela, deparando com descobertas intrigantes.
Por que ver? Este eu ainda não vi, mas não posso deixar de recomendar um filme com QUATRO HORAS de duração que foi apontado pela revista francesa Cahiers du Cinèma como o melhor da temporada passada.
Sessão na Cinemateca Capitólio, no dia 28/4, às 18h15min (comentada pela atriz Juliana Muras)