O Amazon Prime Video adicionou a seu menu um filme que foi fracasso de público e de crítica quando estreou, mas depois se tornou uma obra de culto: O Mensageiro do Diabo (The Night of the Hunter, 1955), de Charles Laughton.
Esse foi o primeiro e, diante da frustrante recepção, último longa-metragem solo dirigido por Laughton (1899-1962), inglês que ganhou o Oscar de melhor ator por Os Amores de Henrique VIII (1933), concorreu ao mesmo troféu por O Grande Motim (1935) e Testemunha de Acusação (1957, também disponível no Prime Video) e realizou em parceria com Irving Allen e Burgess Meredith Fugitivo da Guilhotina (1949). O roteiro escrito por James Agee, indicado à premiação da Academia de Hollywood como coautor do script de Uma Aventura na África (1991), baseia-se no romance homônimo publicado em 1953 por Davis Grubb — que, por sua vez, se inspirou em uma história real: a de Harry Powers, enforcado em 1932 após ser sentenciado pelo assassinato de duas viúvas e três crianças no Estado da Virgínia Ocidental, nos EUA.
Rebatizado como Harry Powell, o personagem principal é interpretado por Robert Mitchum (1917-1997), que tem aqui um de seus grandes desempenhos, lado a lado com Fuga do Passado (1947) e Círculo do Medo (1962). Trata-se de um assassino serial misógino que se autoproclamou reverendo. Nas suas conversas com Deus, aponta que o Todo-Poderoso tolera assassinatos ("Seu livro", a Bíblia, "está cheio deles"), mas "odeia coisas com cheiro de perfume, coisas rendadas, coisas com cabelos encaracolados".
Sob esse disfarce, tal qual um Lobo Mau em pele de cordeiro, Powell vai se aproximar da viúva de um ex-companheiro de cela condenado à morte, a garçonete Willa (Shelley Winters, oscarizada como coadjuvante na década de 1960 por O Diário de Anne Frank e Quando Só o Coração Vê), e dos filhos pequenos, John (Billy Chapin, que encerrou a carreira quatro anos depois) e Pearl (Sally Jane Bruce, em seu único papel). Antes de ser preso, o tal sujeito, Ben Harper (encarnado por Peter Graves, que depois ganharia fama como protagonista do seriado Missão Impossível), escondeu em casa uma bolada de dinheiro. Só as crianças sabem onde estão os US$ 10 mil roubados (quantia equivalente a cerca de US$ 210 mil hoje).
Prestes a ganhar uma refilmagem pelas mãos de Scott Derrickson, diretor de A Entidade (2012), Doutor Estranho (2016) e O Telefone Preto (2021), O Mensageiro do Diabo pagou o preço por estar à frente do seu tempo. Embora já estivesse acostumado aos tipos niilistas e amorais do cinema noir, o público da época talvez ainda não soubesse como lidar com Harry Powell, um personagem simultaneamente diabólico e divertido, tão sedutor quanto repulsivo. Sua dualidade é literalmente expressa nas tatuagens que carrega nos dedos das mãos: "love" (amor) na direita, "hate" (ódio) na esquerda. Não à toa, é considerado pelo escritor Stephen King um dos maiores vilões da ficção.
A plateia também pode ter ficado desconfortável diante dos diálogos sobre sexo e do não enquadramento do filme em um único gênero: a trama policial também flertava com o terror e a fábula infantil (vide o prólogo narrado pela atriz Lillian Gish), além de beber bastante do Expressionismo Alemão em sua estética — a começar por ser em preto e branco. Efeitos de iluminação do diretor de fotografia Stanley Cortez (indicado ao Oscar por Soberba, de 1942, e por Desde que Partiste, de 1944) e de composição dos cenários impressionam ainda hoje. Por exemplo, o interior de uma pequena casa rural ganha ângulos e sombras de um enorme templo gótico. E há sequências dotadas de um artificialismo dos contos de fadas, como a da fuga dos irmãos Harper em um barco.
Entre os fãs de O Mensageiro do Diabo, estão os críticos da mítica revista francesa Cahiers du Cinèma, que em 2008 listaram o título de Charles Laughton como o segundo melhor de todos os tempos, atrás apenas do eterno Cidadão Kane (1941), de Orson Welles. As tatuagens de Harry Powell ganharam status de ícone (e passaram a ser copiadas ou parodiadas), assim como o discurso do vilão sobre a luta entre o Bem e o Mal. O cineasta Spike Lee reverenciou o personagem em Faça a Coisa Certa (1989): encarnado por Bill Nunn, Radio Raheem tem em cada mão um soco inglês, com a palavra "love" na direita e "hate" na esquerda, e profere um diálogo muito semelhante ao original.
Cabo do Medo (1991), a refilmagem de Martin Scorsese para Círculo do Medo, também presta tributo, e de forma metalinguística. Ao decorar o corpo do vilão Max Cady (Robert De Niro) com tatuagens de cunho religioso, empresta à recriação de um dos papéis mais conhecidos de Robert Mitchum elementos visuais de outro.
Os irmãos Ethan Coen e Joel Coen celebraram O Mensageiro do Diabo em Arizona Nunca Mais (1987), O Grande Lebowski (1998) e Bravura Indômita (2010) — neste último, o passeio noturno dos personagens de Jeff Bridges e Hailee Stenfield remete ao da jornada de John e Pearl pelo rio, e a trilha sonora emprega o tradicional hino religioso Leaning on the Everlasting Arms (1887).
A mais recente homenagem aconteceu em Bela Vingança (2020), de Emerald Fennell. O Mensageiro do Diabo é o filme que os pais da protagonista estão vendo na TV. Em uma cena posterior, após a personagem de Carey Mulligan fazer uma descoberta perturbadora, ouvimos a bela e fantasmagórica canção Once Upon a Time There Was a Pretty Fly, composta por Walter Schumann e cantada por Betty Benson. Eu me arrepio sempre que escuto.