Com sessões de pré-estreia na terça (19) e na quarta (20) e em cartaz nos cinemas a partir de quinta-feira (21), O Telefone Preto (The Black Phone, 2022) não faz chamadas de longa distância. Dirigido por Scott Derrickson e estrelado por Ethan Hawke, é um filme de terror mais climático do que profundo — terminada a sessão, não fica ressoando na mente do espectador acostumado ao gênero, ao tipo de narrativa e aos temas abordados. Aliás, há linhas cruzadas que se mostram distrações desnecessárias. Seu caráter epidérmico é realçado pela direção de fotografia assinada por Brett Jutkiewciz, o mesmo de Casamento Sangrento (2019) e Pânico (2022), que aposta em imagens texturizadas, com a granulação das câmeras Super 8 em algumas cenas; pela música enervante (no bom sentido) de Mark Korven, o compositor das trilhas de títulos como A Bruxa (2015) e O Farol (2019); e pelo grau de violência física infligida contra e por crianças e adolescentes — isso, sim, surpreende. Perturba.
Louvado por sua estreia, O Exorcismo de Emily Rose (2005), Derrickson não dirigia um longa-metragem desde Doutor Estranho (2016). Em O Telefone Preto, o cineasta estadunidense de 56 anos retoma a parceria com o ator Ethan Hawke e o roteirista C. Robert Cargill. Juntos, eles fizeram A Entidade (2012), um expoente do terror produzido na década passada (pode ser visto em Amazon Prime Video e Globoplay). Na trama, Hawke encarna um escritor de livros sobre crimes reais que acaba de se mudar com a família. No sótão da nova casa, ele encontra uma caixa com filmagens antigas de mortes horripilantes e decide investigar os casos, deixando em risco sua esposa e seus filhos.
O Telefone Preto retoma também características estéticas, a confluência entre terror urbano e horror sobrenatural e a sujeição de crianças e adolescentes ao perigo (além de retomar lembranças sinistras do próprio diretor, que ambientou o filme na sua cidade natal, Denver, em 1978, quando tinha 12 anos). Mas diferentemente de A Entidade, esta não é uma história original de Derrickson e Cargill: eles adaptaram o conto homônimo de Joe Hill, filho dos escritores Stephen King e Tabitha King.
O público habituado às produções de cinema, de TV e do streaming baseadas nas obras do pai e do filho vai reconhecer, em O Telefone Preto, elementos recorrentes. Se na série NOS4A2 (2019-2020) — pronuncia-se Nosferatu —, versão de um romance de Hill, há um ser imortal que se alimenta de almas infantis, agora temos um sequestrador de adolescentes, encarnado por Ethan Hawke. Batizado pela imprensa local de Grabber (agarrador), o personagem permite ao ator indicado ao Oscar por Dia de Treinamento (2001), Antes do Pôr do Sol (2004), Antes da Meia-Noite (2013) e Boyhood (2014) exercitar um lado perverso como nunca experimentara. E Hawke faz isso usando praticamente apenas a postura física, a voz, as mãos e o olhar, uma vez que seu rosto está sempre coberto ou parcialmente coberto por uma das máscaras de sua aterradora coleção.
A próxima vítima pode ser o tímido mas esperto Finney (Mason Thames), que já enfrenta sérios problemas na escola, onde é vítima do bullying e do isolamento, e em casa, onde o pai alcoolista (um abjeto Jeremy Davies) bate de cinto na irmã caçula do garoto, Gwen (Madeleine McGraw). Por um lado, essa situação remete a um elenco comum nos livros de Stephen King, o das crianças e adolescentes negligenciados, marginalizados, oprimidos e forçados a lidarem com seus medos e com questões adultas, como visto nos filmes Conta Comigo (1986) e It: A Coisa (2017) — desse último, dá até um déjà vu, por causa dos balões empregados pelo Sequestrador e da capa de chuva amarela usada por uma personagem.
Por outro, alude à infância de Scott Derrickson, conforme ele relatou em reportagem do jornal The New York Times: "Cresci em um bairro da classe trabalhadora, meio operário, meio mexicano, meio branco. Havia muita violência — todo mundo era espancado pelos pais, havia brigas no caminho para a escola, na volta da escola, na escola. Acho que eu tinha oito ou nove anos quando meu amigo vizinho bateu na porta. Ele estava chorando e disse: 'Alguém assassinou minha mãe'. Sua mãe foi sequestrada, estuprada, morta e enrolada em fios telefônicos — lembro-me desse detalhe — e jogada no lago local. Então, o serial killer que poderia pegar você do nada era uma coisa real para nós naquele bairro. Isso estava sempre no ar".
Essa atmosfera é bem traduzida em O Telefone Preto, pois o Sequestrador não faz nenhum tipo de distinção ao escolher seus alvos — tanto faz se é um craque do beisebol ou um rebelde agressivo. Aliás, o filme tampouco procura explicar motivações do vilão ou mergulhar em seu passado: ele é o que ele é — e isso, em vez de torná-lo menos consistente, acaba por ampliar sua aura maligna. Quase se transforma em um símbolo, mas Derrickson não desenvolve de forma satisfatória essa ideia.
Em que pese a angustiante e revoltante cena do cinto, Gwen mostra-se a responsável pelo alívio cômico em O Telefone Preto — vide as tiradas sobre Jesus Cristo. Ela também é uma criança com dons místicos (manifestados em sonhos), a exemplo do Danny de O Iluminado (1980). Finney e o Sequestrador vão repetir uma dinâmica frequente na obra de Stephen King: a do jogo de gato e rato em um contexto de aprisionamento, a exemplo do próprio O Iluminado e de filmes como Louca Obsessão (1990), O Aprendiz (1998) e Jogo Perigoso (2017). O telefone preto do título vai permitir a Finney acessar uma outra dimensão e, pode-se dizer, ganhar poderes, a exemplo das chaves mágicas do seriado Locke & Key (2020-2022), baseado em quadrinhos escritos por Joe Hill. Por fim, como nesse seriado e também em It, a conexão entre irmãos ou amigos será fundamental para encarar o monstro da vez.