"A arte existe porque a vida não se basta." (Ferreira Gullar)
Que coisa bem difícil é a simulação da alegria. No cinema e principalmente no teatro (onde não se permite retomar a mesma sequência), há uma fantástica exigência de talento que consagra ou liquida o pretendente à condição de artista. E a exposição do dom dos privilegiados tem a leveza da espontaneidade, enquanto o determinado a forçar ser se consome num esforço tão grande, que o cansaço contamina o espectador, para quem o espetáculo devia ser lúdico e relaxante, mas se transforma em uma exaustiva sessão de halterofilismo emocional.
Kathy Bates não teve concorrência ao Oscar de melhor atriz em 1991, pelo papel espetacular, em Louca Obsessão (1990), de Annie, uma enfermeira que retira de um carro capotado numa tempestade de neve um motorista com fraturas nas pernas e leva-o para sua cabana. Lá, descobre que o acidentado é o famoso escritor Paul Sheldon (interpretado por James Caan), autor de Misery, a sua novela predileta. Depois de um início de euforia amistosa, ela enlouquece ao saber que, no livro a caminho do prelo, a sua heroína ia morrer.
Ele só queria que os médicos anunciassem quanto tempo de lucidez lhe restava.
A partir daí, o suspense só aumenta no melhor estilo Stephen King, o autor do romance no qual o filme se baseia. Ela determinada a jamais libertá-lo, para que a morte da heroína não se consumasse, e ele tentando de todas as maneiras simular um afeto impossível, na expectativa desesperada de fugir. Quando ele sugere que ela prepare um jantar a dois, ocorre, na minha opinião, a cena pela qual ela merecia uma segunda via do Oscar. Com o jantar encaminhado à luz de velas, ela se ausenta por alguns minutos e volta maquiada e com um deslumbrante e comovente ar de felicidade quase impossível de ser reproduzido, enquanto que todas as atrizes medianas já choraram de maneira convincente.
Outra atriz, a australiana Toni Collete, protagonizou em O Casamento de Muriel (1994) uma cena que os cinéfilos consideram inesquecível: uma jovem feia, com sobrepeso, discriminada pelas colegas na escola, aceita participar de uma negociação que envolvia o casamento com um galã da natação sul-africana, de modo que esta aliança permitisse que uma vítima indireta do Apartheid pudesse concorrer às Olimpíadas pela Austrália.
Apesar de uma situação completamente artificial, a alegria do cerimonial era genuína e, com a experiência de dezenas de casamentos presenciados, nunca vi ninguém entrando na igreja mais feliz e mais radiante. Sempre que posso, revisito O Casamento de Muriel por esta cena, que ocorre no 71º minuto do filme.
Um amigo querido, com um trauma latente do convívio penoso com um familiar com Alzheimer, sempre que esquecia alguma coisa, dessas difíceis de explicar, insistia que os médicos amigos solicitassem uma ressonância do cérebro, para ter certeza de que não estava também com uma doença. Algum tempo depois, talvez uns 10 anos, o acompanhei numa nova avaliação, agora solicitada por um neurologista. Como um leigo super informado, ele reconheceu as placas amiloides. Não tinha lamento na voz, apenas a preocupação de poupar os pais octogenários da notícia ruim: "Vamos lá, eu tenho que parecer feliz e aliviado".
Só queria que os médicos anunciassem quanto tempo de lucidez lhe restava. Com esta informação, ele foi, com a cara mais feliz que já vi, a caminho de casa, para contar que os exames tinham sido normais. Pela simples esperança de poder seguir cuidando dos seus amados e ainda pensando por eles. Pelo tempo que fosse. Talvez no extremo desta tarefa amorosa resida a força que pode fazer a vida imitar a arte.