Quem trabalha com alta complexidade, ainda que nunca se habitue, passa a ter um convívio inevitável com a morte, dada a incômoda naturalidade com que ela circula por ali, com a soberba de quem sabe que, mais dia, menos dia, prevalecerá.
Luiz Eduardo teve uma vida comum, sem exageros e sem pretensões que anunciassem qualquer ambição. Nada disso, conformado com o que tinha, de tão despretensioso que era, se tivesse a chance de ter mais, precisaria de um tempo para decidir o quê.
Seguindo a tendência dos modestos, foi sempre avesso à qualquer competição e, contente que estava consigo mesmo, nem sonhava em ser um outro. Pressionado pela mulher para que se qualificasse mais em busca de uma promoção, ele respondia, sempre assim, para desespero dela:
— Eu não conseguiria me acostumar em ser outra pessoa. E eu já era assim quando você aceitou ficar comigo!
Todos esses detalhes da sua frágil biografia soube pela família ao longo dos meses em que convivemos.
Quando procurou-me para a primeira consulta, não tinha nada desse estereótipo pacato e preguiçoso, era pura ansiedade. Três anos antes, removeu uma ferida do dorso, e não lembrava de ter ouvido sobre a natureza da coisa, mas agora recebeu a recomendação de procurar um especialista porque tinha alguma coisa no pulmão.
"Você tá bem complicado"
Já em franco processo de negação, foi atrás de um primo médico, que vá lá saber por quais mesquinhas razões foi cruelmente sucinto:
— Se for o que eu penso, você tá bem complicado!
E, para azar dele, o primo era o tipo de médico que sempre acerta quando a notícia é ruim.
Tentado a lhe dizer que ninguém merecia um primo daqueles, e que a vida devia ser mais condescendente já que não temos possibilidade de escolhê-los, mas mordi a língua. Não era hora de revisar a natureza humana, e nada do que lhe dissesse serviria para minimizar o medo escancarado na perplexidade do olhar e na umidade das mãos.
Com a preocupação básica de preservar alguma esperança, comentei que 10 anos atrás, naquela condição, não havia espaço para discursos falaciosos: o diagnóstico de melanoma metastático era sinônimo de sobrevida curta e sofrida. Mas que, felizmente, com o advento promissor da imunoterapia, era razoável a comparação otimista dessa condição com outras doenças crônicas.
Quando ele quis saber se já se podia falar em cura, disse-lhe:
— Ainda não, mas a velocidade dos avanços nesta área permite que, por ora, festejemos o tempo que vamos ganhar com o que já dispomos.
Nestes termos, firmamos o mais solene dos pactos no sofrimento: o da parceria.
Na despedida, a resposta ao meu tradicional "cuide-se" foi automática:
— Cuide-se você, porque eu vou precisar muito de alguém em quem acreditar.
Quando me deu a mão, antes do abraço, percebi que a umidade já não estava. Tinha migrado para os olhos.