A rotina do trabalho na alta complexidade utiliza critérios baseados em evidências, e em função desses critérios constrói o prognóstico de sobrevivência a partir de um determinado nível de gravidade, e este passa a ser o teor da comunicação com familiares.
A grande exigência médica, do ponto de vista emocional, consiste em ser realista preservando racionalmente a esperança, naquelas situações em que o desfecho não é previsível.
Um conceito tristemente prevalente entre médicos mais jovens, por imaturidade, ou de qualquer idade, por rigidez afetiva, é a pretensa preocupação com preparar a família para o que virá, ou é possível que venha. Retomando-se aqui a discussão entre a verdade total ou a verdade útil. Mas nada justificaria a crueldade da pergunta ao casal que chorava abraçado na sala de espera de uma grande emergência: “Ele é o único filho de vocês?”.
A postura mais correta entre os que não renunciam à empatia é encontrar um equilíbrio, exigente de sensibilidade e delicadeza, que fuja do superotimista, que é um tolo, e do pessimista crônico, que é um chato. Ou, parafraseando Ariano Suassuna, sendo um realista esperançoso.
A busca desse equilíbrio é desafiadora para quem se submete, por exemplo, à rotina imposta ao intensivista, com a responsabilidade de fazer a síntese do caso, em pé, no corredor de acesso à UTI, e de olhar repetido na prancheta para não confundir o nome do paciente, na conversa apressada com a família. Ou dando boletins oficiais sobre o estado de saúde para a família ou imprensa, na porta da emergência de um pronto-socorro superlotado. Mas nada impede que a escolha das palavras revele preocupação com o sofrimento de alguém que poderia ser um de nós, aleatoriamente selecionado para esta provação.
A superficialidade progressiva de um relacionamento que devia ser afetuoso, somado à ausência de vínculo afetivo desconsiderado na urgência, resume bem a situação de desamparo que foi paulatinamente construindo a indiferença com a dor do outro, e, no final, transformou as nossas emergências em passarelas da rigidez, onde desfila, com enfaro, a morte banalizada.
Além de todos os fatores que acrescentam estresse, como medo de errar, noção do tamanho da responsabilidade, sono de menos, cansaço de mais, sobrecarga de trabalho e falta generalizada de reconhecimento, ainda, com muita frequência, se soma a agressividade de quem, vivendo o drama de ter um familiar necessitando de UTI, está inconscientemente em busca de alguém para descarregar suas mágoas.
Entre os protestadores revoltados, ocupam uma posição de triste relevância os que não conseguem acomodar a consciência pesada pela culpa, de terem se omitido no cuidado de quem agora é o centro do desespero daquela família.
O dilema do médico é a preservação da humanidade diante da frequente insanidade de quem finalmente entendeu que retribuir o cuidado de quem outrora nos cuidou tem prazo de validade, e que, quando se esgota, o espólio é o remorso.
E esse sentimento machuca mais porque é intransferível e definitivo. E com cadeira cativa nas madrugadas insones.