Por Anelise de Carli
Doutora em Comunicação pela UFRGS, professora na UFRJ e pesquisadora da APPH
Em Por que Ler os Clássicos, Ítalo Calvino responde à pergunta dizendo que clássicos são os livros que nos influenciam de modo particular porque se impõem como inesquecíveis e também “se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”. É exatamente dessa forma que podemos pensar no cinema de Friedrich Wilhelm Murnau (1888-1931). Tenhamos em mente que, em apenas uma década, de 1921 a 1931 – período coberto pela mostra Murnau!, que se inicia neste sábado (28/5) na Cinemateca Capitólio, em parceria com o Goethe-Institut –, Murnau fez a proeza de realizar, um atrás do outro, alguns dos principais filmes da história do cinema.
Há cem anos, no Salão de Mármore do Jardim Zoológico de Berlim, uma privilegiada audiência vestida para um baile à fantasia tremia diante da primeira exibição de Nosferatu. Eles viram ali a sombra do vampiro de Murnau, subindo as escadas com suas mãos pontiagudas, e testemunharam a criação de uma “forma de ver” o monstro que, desde então, jamais desapareceu.
A força plástica com a qual Nosferatu nos assombra não é fruto do acaso. Ao longo da vida, Murnau desenvolveu uma série de inovações visuais que sofisticaram a linguagem fílmica e tornam possível a experiência do cinema da forma como conhecemos hoje. Nesse seu filme mais famoso, há pelo menos três: um jogo prodigioso de luz, que nos lembra o teatro de sombras; e o uso de cenas em negativo e aceleradas para criar um ambiente “terrorífico” para as montanhas dos Cárpatos. Os recursos mais sofisticados de Murnau parecem advir de seu interesse pelas artes plásticas e o estudo de seus recursos representativos. Na cena em que Ellen espera na praia a volta do seu “Ulisses” – que evoca diretamente o pintor Caspar David Friedrich –, Murnau enquadra o mar de maneira que a maré fique na diagonal, dando profundidade à cena. Esse recurso virou uma técnica tradicional do cinema desde então.
Na juventude, Murnau estudou com Max Reinhardt, na época diretor do Deutsches Theater. A experiência foi crucial para suas criações posteriores, pois a companhia teatral berlinense era palco de experimentações cenográficas, sonoras e performativas das mais inovadoras. Poucos anos depois, surgia o movimento do expressionismo alemão em duas principais vertentes: o caligarismo (com efeitos estéticos “deformantes”) e o kammerspiel (mais realista). Em Nosferatu, o vampiro da Transilvânia nos parece especialmente “pontiagudo” e, com isso, afiado como uma faca e ferino como uma serpente porque Murnau preferiu um vampiro “quase mudo”, mas muito bem trabalhado imageticamente.
Além de produzir o ator Max Schreck com próteses anulares e auriculares, Murnau cuidou para enquadrá-lo, na primeira metade do filme, quando conhecemos o personagem, quase sempre debaixo de portais e arcos arrendondados. O contraste entre os elementos arendondados e pontiagudos nos “ensina” a ver o personagem e transfere para ele essas características “afiadas”, de modo que, mesmo não estando mais debaixo das rotundas de seu castelo, a impressão “pontiaguda” da sua presença permanece seguindo Nosferatu para outros cenários. Assim, usamos outras imagens conhecidas para compor a de Conde Orlok e o nosso engajamento para dar a ele profundidade psicológica faz com que tenhamos que acessar nossos próprios recursos, como o universo de monstros que nos habita.
O filme é hoje considerado uma obra-prima, mas antes disso foi alvo de uma grande polêmica e um longo processo judicial. O motivo foi o roteiro de Henrik Galeen, inspirado fortemente no Drácula de Bram Stocker. A viúva do escritor, Florence Balcombe, considerou a produção, com ganho de causa, um plágio. A sentença: restituição patrimonial e a destruição das cópias da película. Seguindo o ensinamento do vampiro que o nomeia, o filme evidentemente resistiu à sua própria morte.
Nosferatu foi uma das dezenas de filmes aos quais Murnau se dedicou assim que voltou da Primeira Guerra Mundial, onde serviu ao exército alemão. Ele não deixou de fabular nem mesmo durante o período em que foi prisioneiro de guerra. Nesse período, escreveu o roteiro de um filme e participou de um grupo de teatro organizado pelos alemães presos. Apesar de ter estudado literatura e história da arte desde a época escolar, quem diria que um dos maiores cineastas de todos os tempos teria de encarar a falta de apoio da família quando decidiu se dedicar ao teatro.
O cinema de Murnau inventa visualmente um mundo para o qual até então estávamos cegos e, com sua força plástica, nos ensina a vê-lo à sua maneira.
Logo após a obra-prima vampiresca, Murnau realiza outra. É A Última Gargalhada (1924), filme que espanta pela contemporaneidade de sua linguagem. Nele há uma série de recursos de movimentação de câmera e criação de perspectiva que possibilitam ao espectador uma visão imersiva. Desde a primeira cena do filme, já vemos uma invenção visual do cineasta alemão, elaborada em conjunto com o diretor de fotografia Karl Freund. Ambos posicionam a câmera dentro de um elevador com vista para fora, criando uma sequência em pan-down. Em seguida, percebemos que a câmera está no ponto de vista do personagem, que caminha pelo lobby de um hotel, inventando, assim, o cinema em “primeira pessoa”. Logo mais, outra agradável surpresa visual: a câmera anda para trás, desbravando o longo cenário de um restaurante em suas diversas salas, e, assim, inaugurando a técnica do dolly shot. Essas são algumas das várias técnicas apresentadas somente neste filme e que vão se tornar, desde então, recursos tradicionais no cinema. Elas são utilizadas mais tarde por Orson Welles no inesquecível Cidadão Kane (1941) e por Spike Lee em vários de seus filmes e hoje não conseguimos sequer pensar um filme sem esses recursos visuais.
Em seguida, Murnau realiza sua primeira grande produção: Fausto (1926), sua versão da lenda germânica que também inspirou a famosa peça de Goethe. Logo depois, emigra para os Estados Unidos e produz sua quarta obra-prima seguida: Aurora (1927), que já entrou em diversas listas elaboradas por críticos de cinema de melhores filmes da história.
Pouco tempo depois, sua morte prematura impede que Murnau assista ao lançamento do seu último filme, Tabu (1931), também um clássico do cinema. Nessa viagem para a ilha de Bora Bora, no Pacífico Sul, Murnau embarca acompanhado de Robert J. Flaherty, pioneiro do cinema documental, no exato momento em que a antropologia norte-americana está se aproximando do território. Suas filmagens são algumas das primeiras formas de figuração visual da cultura polinésia. Mais uma vez, o cinema de Murnau inventa visualmente um mundo para o qual até então estávamos cegos e, com sua força plástica, nos ensina a vê-lo à sua maneira.
Murnau! 100 Anos de Nosferatu e Outras Obras-primas
A mostra fica em cartaz deste sábado (25/5) até 8/6. A abertura, às 18h de sábado, terá comentários de Anelise De Carli. Veja a programação completa em capitolio.org.br.