Em 27 de março de 1909, o filme Ranchinho do Sertão foi exibido no extinto cinema Recreio Ideal, em Porto Alegre. O evento marcou a primeira projeção da história de uma produção de ficção filmada no Rio Grande do Sul. Os negativos, ou seja, a película em que o título filmado pelo alemão Eduardo Hirtz foi gravado, perderam-se com o tempo. Com ela também desapareceu toda a história que aquela obra poderia apresentar para a posteridade. Em sua homenagem, estipulou-se o Dia do Cinema Gaúcho, na mesma data da exibição.
Para evitar que perdas como essa ocorram, é necessário todo um trabalho de preservação. As obras cinematográficas carregam consigo um recorte histórico e a memória da evolução do trabalho audiovisual, além de servirem para a reflexão sobre a cultura do povo com o passar do tempo. Porém, instituições responsáveis por este movimento sofrem com a precarização, a falta de investimento e de interesse na conservação, conforme apontam fontes consultadas para esta reportagem. Um exemplo recente foi o incêndio que atingiu um dos depósitos da Cinemateca Brasileira, em 29 de julho, causando um prejuízo irreparável para a memória cultural do país.
Neste incidente, não há registros, na lista de materiais perdidos, de títulos cinematográficos gaúchos. Porém, assim como outras tragédias que assolaram a Cinemateca Brasileira no decorrer dos anos, levantou-se o sinal de alerta sobre a conservação de filmes importantes para a história do cinema no país e, dentro dele, no Rio Grande do Sul. GZH ouviu especialistas no assunto para entender onde estão guardadas algumas das principais produções já filmadas no Estado.
— Preservar a história tem um custo financeiro alto e falta dinheiro para isso, mas também falta interesse. É preciso, antes de mais nada, mudar a mentalidade cultural do país, não apenas dos governantes, mas de toda a sociedade. Neste último incêndio, os acervos principais não foram afetados, mas isso pode acontecer a qualquer momento — enfatiza Fatimarlei Lunardelli, coordenadora do Núcleo de Pesquisa, Informação e Memória do Instituto Estadual de Cinema (Iecine).
Processo complexo
Até meados dos anos 2000, o cinema ainda estava em uma era mais "analógica", com os filmes ainda sendo gravados em película. Ou seja, naqueles rolos que foram eternizados na nossa memória em clássicos como o italiano Cinema Paradiso, de 1988. Neste filme vencedor do Oscar, por sinal, pode-se ver que a falta de cuidado com o nitrato de celulose, material do qual as películas eram feitas até por volta da década de 1950, poderia gerar facilmente combustão, por ser altamente inflamável.
Para resolver esse problema, as películas criadas pela indústria começaram a utilizar o triacetato de celulose como matéria-prima, abandonando o nitrato. E o incêndio espontâneo. Claro que esta mudança também encontrou os seus problemas, como uma deterioração rápida caso não seja devidamente cuidado, podendo levar a uma espécie de "autodestruição" da produção. Somente nos últimos anos o cinema digital entrou em cena e os filmes foram parar em HDs e nuvens, mantendo-se assim, também, salvos nas mãos dos realizadores.
Ou seja, preservar a história analógica do cinema não é uma tarefa fácil. São necessários muita técnica e investimentos na área, com profissionais capacitados e um espaço adequado — para se ter ideia, até o calor do Brasil é altamente prejudicial para as películas, sejam elas de nitrato ou de triacetato. Este lugar seguro, no caso, é (ou era) a Cinemateca Brasileira. De acordo com o pesquisador e professor de Cinema da PUCRS Glênio Póvoas, a instituição é encarregada de preservar a maior parte da memória audiovisual do país; porém, sofre com o descaso por parte do governo federal.
Segundo Póvoas, o cinema gaúcho também utiliza a casa de São Paulo para sobreviver aos efeitos do tempo. A quantidade de filmes daqui que estão lá, porém, é desconhecida. Um mapeamento feito pelo pesquisador e por Fatimarlei para o Iecine registrou cerca de 650 longas-metragens gaúchos produzidos desde os primórdios do cinema por essas terras. Porém, boa parte das produções aconteceram depois da era digital, que começou após os anos 2000.
O número de filmes feitos no Estado que estão na Cinemateca Brasileira é impreciso e não há como confirmar com a instituição. O motivo? Sem funcionários, os telefonemas não são atendidos e os e-mails ficam sem resposta.
O caminho dos filmes
Referência em produção audiovisual no Rio Grande do Sul, a Casa de Cinema de Porto Alegre confia os originais de seus filmes aos cuidados da Cinemateca Brasileira. De acordo com a sócia do espaço, a roteirista e realizadora Ana Luiza Azevedo, todos os negativos, ou seja, os arquivos originais das produções da produtora, estão sob tutela da instituição federal, que é de responsabilidade da Secretaria Especial de Cultura, que faz parte do Ministério do Turismo.
— Este é o procedimento adotado pela grande maioria das produtoras brasileiras, já que a Cinemateca Brasileira era o órgão de preservação com melhores condições de armazenamento e cuidado. Tinha um corpo funcional especializado que, além de ser responsável pela preservação e recuperação de muitas obras audiovisuais brasileiras, tinha um trabalho de pesquisa, catalogação, e, ainda, de formação de novos profissionais e cinematecas — conta Ana Luiza.
Ou seja, os rolos originais que conservam títulos como O Dia em que Dorival Encarou a Guarda, Ilha das Flores e O Homem que Copiava estão na Cinemateca Brasileira. Porém, na sede da instituição, que fica em um endereço diferente do galpão onde houve o incêndio no último mês. O lugar, no entanto, já foi vítima de cinco incêndios em sua história, além de uma enchente. Com isso, diversas obras históricas foram perdidas para sempre. E isso gera incertezas constantes por parte da comunidade cultural que preza pela segurança da memória do audiovisual brasileiro.
— A Cinemateca Brasileira tem um reconhecimento internacional pelo seu trabalho, e o mundo assiste estarrecido e muitíssimo preocupado à forma como a Cinemateca vem sendo destruída nos últimos anos. É um crime à memória e cultura brasileira — enfatiza a sócia da Casa de Cinema de Porto Alegre.
Essa prática de enviar os negativos dos filmes para a Cinemateca Brasileira é, antes de uma busca por tentar preservar a mídia física original das obras, uma exigência por parte do governo federal quando as produções utilizam recursos da Agência Nacional do Cinema (Ancine) para serem realizadas — ou seja, a maioria dos títulos realizados no Brasil.
De acordo com Marcus Mello, funcionário da Cinemateca Capitólio, um dos títulos mais icônicos do cinema gaúcho, Vento Norte (1951), de Salomão Scliar, por exemplo, teve o seu negativo perdido. Porém, cópias de exibição – as que rodavam pelos cinemas – foram recuperadas e enviadas para a Cinemateca Brasileira. Na instituição, seria possível realizar um processo de restauração e de criação de novos negativos. A partir deles, daria para digitalizar a obra em alta resolução. Somente assim ela poderia ser exibida na televisão, por exemplo. No entanto, não há previsão de quando (e se) este processo será realizado.
Outros rolos fílmicos que fazem parte da história cinematográfica gaúcha se encontram na Cinemateca Brasileira, como os fragmentos de Os Óculos do Vovô (1913), o mais antigo filme de ficção brasileiro ainda preservado. Dirigido pelo português Francisco Santos, o curta, produzido em Pelotas, tinha originalmente 15 minutos. Restaram pouco mais de quatro, mas que são essenciais para a cultura do país.
A Cinemateca Brasileira é guardiã, também, da obra de Teixeirinha, que foi campeão de bilheteria entre os anos 1960 e 1980. De acordo com a filha do músico, Nancy Margareth Teixeira, a Fundação Teixeirinha teve acesso aos negativos e, a partir deles, digitalizou, remasterizou os títulos e os armazenou em um HD, que está em posse da família, com a qualidade de imagem preservada.
Preservando por aqui
Marcus Mello comenta que a Cinemateca Capitólio tem como objetivo auxiliar na preservação histórica das obras cinematográficas do Estado. Assim, o espaço conserva filmes em diferentes formatos e, como projeto, pretende realizar cópias das películas guardadas na Cinemateca Brasileira e guardar em suas quatro salas de acervo, localizadas atrás da tela principal de exibição.
De acordo com o diretor do Instituto Estadual de Cinema (Iecine), Zeca Brito, a instituição está com um projeto de indexação das informações presentes nos longas-metragens gaúchos. Ou seja, a ideia é realizar uma escrita histórica dos títulos filmados por aqui, preservando os dados das obras. Uma espécie de IMDb daqui.
— Estamos muito preocupados com a preservação da memória e com o que está acontecendo no Brasil como um todo, nos museus e nas instituições públicas. O que aconteceu na Cinemateca era uma tragédia já anunciada — diz Zeca Brito.