Natural de Porto Alegre, a atriz Julia Lemmertz está em Música para Quando as Luzes se Apagam, que chega aos cinemas na próxima quinta-feira (22/7). Rodado no Vale do Taquari, o filme entrelaça ficção e realidade, abordando a transição da adolescente Emelyn (Emelyn Fisher) em Bernardo. O longa marca a estreia do escritor e ator Ismael Caneppele na direção. Filha dos também atores Lineu Dias e Lílian Lemmertz, Julia tem visto seus dois filhos seguindo o caminho artístico: Luiza também é atriz e Miguel, rapper. Ela ainda deve marcar presença na próxima novela inédita das 19h da Globo, Quanto Mais Vida Melhor, prevista para estrear no final do ano. Além disso, Julia costuma ser uma artista engajada em causas sociais e políticas. Nesta entrevista, ela falou sobre seus trabalhos, a pandemia e seus anseios com a situação do país.
Música para Quando as Luzes se Apagam é um filme que usa a linguagem documental, com camadas de realidade e ficção. O que te levou a esse projeto?
Conheci o Ismael no Festival do Rio. Na ocasião, Os Famosos e os Duendes da Morte (longa baseado no romance homônimo de Caneppele, em que o próprio escritor atua) ganhou como melhor filme. Eu era jurada. Fiquei encantada com o filme. Passou um tempo, Ismael me ligou e falou que tinha o roteiro de um livro que escreveu, que queria filmar e perguntou se eu estava a fim de fazer. Li o roteiro e vi que era outra proposta. Era história de um guri que virava uma garota, tinha a ficção mais forte. À medida que o projeto foi avançando, Ismael encontrou a Emelyn, e ela tinha uma história parecida – se descobria menino. Ela teve essa entrada no corpo masculino bem acolhida pela família. A partir disso, Ismael quis falar desse corpo que se transforma: qual é sua busca para ser inteiro? Para ser real consigo mesmo? Faz diferença se você é homem ou mulher? Eram tantas questões que ele quis fazer um filme que falasse dessa vida real. Por isso a linguagem documental. O meu papel é um pouco como se fosse clarear a escolha para Emelyn, entender melhor esse corpo. Foi uma viagem para todo mundo que fez esse filme. Foi uma experiência única.
Não havia roteiro?
Havia, sim. Mas eu não sabia direito qual era. Só sabia o que ia fazer na hora. Recebia o briefing da cena quando saía para filmar.
Lá no início do projeto, Caneppele descreveu o processo do filme como um reality show. A equipe com três câmeras, e os atores vivendo a vida real por horas a fio. Como foi isso?
A primeira vez que encontrei com a Emelyn já foi em uma cena! Quando estamos no rio e acendemos uma fogueirinha. Quando cheguei para filmar, a Emelyn já estava lá. Os atores ganharam umas câmeras portáteis, o Ismael nos dava para filmarmos um “autodocumentário”. Muitas imagens do filme foram feitas pelos atores. Foi lindo.
Você foi em um bailão no filme. Foi divertido?
Quando fomos filmar essa cena, obviamente ninguém sabia. Não havia muito aparato. Era tipo “Júlia, vai lá que estamos te filmando de longe”. Entrei no salão com a cara e a coragem (risos). As pessoas me olhavam não acreditando. Acho que eu não estava no ar com nenhuma novela. O público demorou a se dar conta, isso quando me reconheceu. Cheguei até a dançar com uma pessoa! Fiquei empolgada que alguém me tirou para dançar. Mas aí, quando me dei conta, havia sido a produção que tinha providenciado isso... Fiquei superdecepcionada, achei que tivesse abafado (risos).
Como foi sua relação com Emelyn?
Muito amorosa. A gente se viu e se conectou imediatamente. Eu sabia que, para ela, era tudo muito novo. E muito exposto: pô, a menina está lá, no Interior, vivendo a vida dela, e chega uma equipe de filmagem virando tudo do avesso. Era lindo e divertido, mas também inquietante. Tentei dar um suporte. Falo com ela até hoje, criamos uma amizade.
O Brasil é o país em que mais se matam pessoas trans no mundo, segundo dossiê elaborado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). Como você acha que o filme trabalha essa temática?
Isso é o mais extraordinário: não tem dilema, não tem conflito. Tive papos riquíssimos com a mãe da Emelyn dentro de um hospital em que ela trabalha de enfermeira, durante a madrugada. A família é zero problema. O pai é um caminhoneiro, um amor. Não tem nenhuma objeção à opção dela, só não queria que ela sofresse. Dizia que, “se ela é feliz assim, está tudo bem”. Por isso eu acho tão legal esse filme ser lançado agora, falando desse jeito sobre esse tema. Não é um panfleto. É sutil, é amoroso. Traz muitas coisas subjetivas que levam você a desmistificar o processo. Vivemos em um país que parece estar em uma marcha ré tão radical para tanta coisa... Esse filme é muito bem-vindo porque fala sobre esse tema de forma adulta, não didática. Cada um faz da sua vida o que quiser – respeitando o outro. Estamos no século 21, tem gente morrendo de fome, temos muito com o que nos ocupar para ficarmos preocupados com o gênero dos outros. Temos de nos preocupar com o que realmente importa.
Você costuma falar abertamente sobre questões sociais e políticas e chegou a ir às manifestações que pedem o impeachment de Jair Bolsonaro. Por que a classe artística deve se posicionar neste momento?
Faço parte do movimento Vidas Brasileiras. Antes das manifestações, protocolamos um pedido de impeachment baseado na falta de ações do presidente referente à pandemia. Foi um pedido superelaborado por médicos e advogados e sustentado por fatos. Sou signatária junto a várias pessoas, de Raduan Nassar a Xuxa, passando por Casagrande, Fábio Porchat, Chico César. Sou atriz, tenho uma visibilidade, mas me posiciono como cidadã. Mais do que qualquer coisa, não consigo ficar indiferente ou neutra diante do que está acontecendo. Chegamos a esse ponto justamente porque não nos manifestamos antes. Porque deixamos correr solta uma onda que não víamos. Agora vivemos num mundo louco. Não falo nem polarização, que já virou uma palavra chata. Para mim, é a luta do bem contra o mal, da ignorância contra a ciência. Do bom senso contra a estupidez completa.
O setor cultural tem enfrentado tensões com o governo. Como você avalia a gestão de Bolsonaro na cultura?
Não posso avaliar algo que não existe. O que existe é um desmonte. Uma implosão. Nós, artistas, e também os jornalistas, somos inimigos do governo. O governo quer que a gente suma da face da Terra. Mas isso não vai acontecer porque não existe vida sem cultura ou informação. Não existe progresso nem formação de identidades. Estamos tendo de lutar para defender o óbvio. Não é fácil.
O filme é muito bem-vindo porque fala sobre o tema (transição de gênero) de forma adulta, não didática. Cada um faz da sua vida o que quiser – respeitando o outro. Estamos no século 21, tem gente morrendo de fome, temos muito com o que nos ocupar para ficarmos preocupados com o gênero dos outros.
JULIA LEMMERTZ
Atriz
Ser artista hoje em dia no Brasil é mais difícil do que já foi antes?
Com 58 anos, nunca vivi algo parecido. Talvez na ditadura, mas aí eu era criança. Via o cerceamento de liberdade de expressão, de criação, mas ainda assim, na época, existia a criação. O diabo é que tudo isso está velado em meio à pandemia, o que restringe manifestações, mesmo apresentações culturais – você não pode ir fazer uma peça no teatro para se manifestar, não pode fazer um monte de coisas. Agora é que o povo está indo para a rua. Eu uso duas máscaras e um faceshield, mas vou. Não tem possibilidade de não se manifestar neste momento. Não existe mais ficar em cima do muro, votar nulo ou em branco, ou não querer falar de política. Não é só a cultura, é o meio ambiente, há um desmonte de tudo. Fora os 530 mil mortos. O que mais precisa ocorrer?
Você não teme ser atacada ou cancelada?
Meu Instagram é um campo de batalha. Levo muito porrada e não estou nem aí que me chamem de esquerdopata, que acabou a mamata, aquelas frases feitas ditas por robô ou gente mal informada. Gente que acredita que os atores se beneficiaram da Lei Rouanet. Isso é tão surreal... Eu fiz peça via essa lei. Você tinha que justificar o alfinete que usava na prestação de contas! Se houve produções que burlaram, nem sei como conseguiram. Mas, por mais que a gente explique como a lei funcione, muita gente não quer saber. Só quer achincalhar. Este é um problema atual: as pessoas não acreditam mais nas coisas, não estão abertas, têm suas opiniões e não mudam, mesmo que sejam formadas a partir de distorções. Mas tenho esperança de que isso passe. Lá no fundo, tenho esperança. Acho que vai melhorar, embora o próximo momento, imediato, deve ser muito difícil. O mais importante é a lição que precisamos aprender, que é a de que a gente tem de construir algo que dure. Não é possível que um único governo faça o que quiser.
Durante 16 anos, você foi apresentadora do programa Revista do Cinema Brasileiro, no Canal Brasil. Acompanha a situação de bem perto há muito tempo. como vê o cinema nacional hoje?
Foi um programa para falar daquele momento da chamada Retomada (pós-crise no governo Collor), nos anos 1990. Nunca pensamos que fosse durar tanto tempo. Mas é fato que, nesse período, nosso cinema ganhou corpo, força e visibilidade. E projeção internacional, também. Mas o cinema brasileiro continua remando contra uma maré de dificuldades. A Agência Nacional do Cinema (Ancine) está paralisada. A produção está parada. Há pouquíssima gente filmando, e só por milagre. Já havia dificuldades de encontrar espaço para Música para Quando as Luzes se Apagam, aí, quando íamos lançar, veio a pandemia. Estou em outros dois filmes que estão em suspenso.
Você tem uma longa lista de peças de teatro no currículo. Imagino que sinta saudades dos palcos, não? Como tem sido isso para você?
Estava com uma peça em cartaz quando começou a pandemia, Simples Assim, espetáculo baseado em textos da Martha Medeiros que estava indo para a segunda temporada. É quase impossível sobreviver sem público, sem patrocínio, edital e fomento, só na base da guerrilha, com uma ajuda aqui ou ali, como a da Lei Aldir Blanc, mas o teatro vai sobreviver, de um jeito ou de outro.
O que acha do teatro nas plataformas digitais?
Acho lindo quem faz, vi coisas incríveis, mas eu não tenho ânimo para trabalhar nesse formato. Até fizemos uma versão de Simples Assim para passar no site do Bradesco durante um mês. Gravamos a peça. Foi louquíssimo, cada um gravando de sua casa. E, a meu ver, ficou muito aquém. Mas fizemos a nossa parte. Se fosse para fazer algo mais legal audiovisualmente, teria de ser algo mais elaborado. Só que daí seria outra coisa. Não seria teatro.
Em tempos difíceis como o atual, o que te traz paz?
Eu medito. Faço isso há mais de 30 anos. A meditação me abre um espaço para não ficar só na angústia, Um espaço de respiração, de afeto, criativo, de pensar em coisas boas. Um lugar em que paramos de ficar batendo a cabeça angustiados querendo mudar o mundo. Em lugar disso, começamos a pensar que, para mudar o mundo, a gente tem de começar por um lugar. Pode começar pequeno, na nossa casa, com as pessoas que a gente consegue alcançar. Medito também para me centralizar em um eixo da Terra, mas também fico pensando que não quero me acostumar com isso, não quero perder a indignação.
Você está gravando a novela Quanto Mais Vida Melhor desde o fim do ano passado. Nela, você vive uma empresária de sucesso que quer derrubar sua concorrente, interpretada pela Giovanna Antonelli. Será uma vilã?
A novela é escrita pelo Mauro Wilson, que já roteirizou Tapas e Beijos e A Grande Família. Ele tem uma levada de humor muito legal. É uma comédia, uma novela bem maluca. Feita de forma moderna, colorida. É uma novela diferente de tudo o que eu fiz. Na trama, não tem ninguém totalmente bom ou mau. Todos têm seus lados destrambelhados. Eu e a Giovana somos antagonistas, somos empresárias rivais da área de cosméticos, uma brega, outra chique, mas ao mesmo tempo somos uma dupla que se admira. Não há essa coisa tradicional do vilão que faz maldades e da mocinha que se ressente. E minha personagem é motoqueira, anda em uma Harley Davison. Aprendi a andar de moto para a novela!
É um problema atual: as pessoas não acreditam mais nas coisas, não estão abertas, têm suas opiniões e não mudam, mesmo que sejam formadas a partir de distorções. Mas tenho esperança de que isso passe.
JULIA LEMMERTZ
Atriz
Como é gravar nesse contexto pandêmico? Como os protocolos de saúde afetam a rotina de trabalho?
A gente está gravando tudo, e só vai estrear quando a novela estiver pronta. É a primeira vez que vou fazer uma obra aberta “fechada” (risos). Se o público gostar ou não, tiver opiniões sobre o que pode mudar, não vai rolar. Paciência, é aquilo ali que teremos (risos). Como ainda estamos na pandemia, ninguém quer arriscar ter um ator doente, ter que parar a novela no meio do caminho, como aconteceu com outras. Temos uma quantidade bem grande de protocolos também por isso. Acaba sendo dificílimo gravar. Principalmente para a equipe técnica. Nós, atores, ficamos de máscara, tirando só na hora de gravar. Está puxado. Mas todos estão conscientes e se cuidam.
Você tem dois filhos adultos que seguem carreiras artísticas. Seus pais também eram artistas. Ou seja, a arte está no sangue da família. Você vê semelhanças na relação que tinha com seus pais com a que tem hoje com seus filhos? Como é sua troca profissional com eles?
Vejo como uma continuidade. A relação que eu tinha com meus pais era um pouco diferente. Perdi a minha mãe cedo, com 20 e poucos anos. E eu nunca morei com meu pai, embora a gente se visse muito. Era um cara muito atento ao meu trabalho, estava sempre assistindo e comentando. Gostava de ter ele por perto para saber suas observações. Com meus filhos, o mais novo, Miguel, tem 21, ele é poeta, músico e rapper. Está fazendo faculdade de Jornalismo. É muito sensível. Tem um processo lindo de se colocar artisticamente no mundo. É um repentista, canta o momento. Ele está abrindo o caminho dele, que é muito particular. A Luiza é atriz de teatro, fez alguma coisa de cinema, já. Estava bem concentrada no teatro até chegar a pandemia. É uma atriz linda. Fico orgulhosa dos dois. Eles têm muita consciência de quem são e de onde vêm. É diferente do que vivi lá atrás, é outro momento. Vejo como uma sequência, uma continuidade.
O filme
Rodado na região de origem do escritor e ator Ismael Caneppele, que estreia na direção, Música para Quando as Luzes se Apagam acompanha uma autora que vai a uma vila para criar uma narrativa ficcional sobre a vida de Emelyn. No entanto, cada vez mais, pelos olhos da câmera, Emelyn se torna Bernardo. A estreia nos cinemas está marcada para a próxima quinta-feira (22/7).