Aos 55 anos, o paulista André Abujamra está inquieto durante a pandemia do coronavírus. Como ele mesmo define: passando, cantando e cozinhando. Seja como ator, músico e, agora, também escritor.
Integrante de bandas como Os Mulheres Negras e Karnak, Abujamra lançou dois discos em 2020: ABCYÇWÖK, que produziu em parceria com John Ulhoa (Pato Fu), e Emidoinã – Alma de Fogo, que dá sequência ao seu projeto solo de lançar discos temáticos abordando cinco elementos – o primeiro foi a água em Omindá, em 2018.
Filho do ator e diretor de teatro e apresentador Antônio Abujamra, ele também se lançou escritor com a obra infantil Robô Não Solta Pum (Saíra Editorial), com questionamentos sobre temas triviais do cotidiano, como a origem das palavras “barbante” e “algodão-doce”. E, no final do ano, também foi anunciado oficialmente como integrante de Sbørnia em Revista, websérie que é o mais novo projeto derivado do já clássico Tangos & Tragédias.
Nesta entrevista, fala sobre esses projetos e suas perspectivas e aprendizados em meio à pandemia.
Você escreveu Robô Não Solta Pum há 15 anos e o lançou em 2020. Como foi o processo que resultou em seu primeiro livro?
É um livro que eu fiz quando meu filho mais novo, agora com 17 anos, nasceu. Eu não conseguia dormir, ficava vendo se ele estava acordado. Botava o dedo no nariz para ver se estava respirando (risos). Um dia comentei sobre essa obra em uma live. Sugeriram que eu publicasse. Tive contato com uma editora, que gostou e comprou a ideia. Eu nunca tinha escrito um livro. Robô Não Solta Pum traz perguntas que tem a ver com a forma como eu penso música e poesia. Traz perguntas infantis, que crianças fazem. Tanto é que tem a filhinha de um amigo meu que ficou encanada após o livro: “Mas essas perguntas sou eu que faço, não é o livrinho que tem que fazer para mim”.
Você está com um projeto de lançar cinco álbuns, cada um dialogando com um elemento da natureza. Como surgiu esse projeto?
Há 13 anos, eu estava na praia, na Ilha do Mel (PR), era 5h da manhã, não havia trânsito e parei para observar e ouvir o mar. Pensei na hora: esta é a maior orquestra do planeta. Fiz uma música (Omindá), que diz assim: “Que povo bonito, de ouvir e olhar/ É como a orquestra das ondas do mar”. Decidi produzir um disco em que todas as vidas passem pela união das pessoas pela água. A brincadeira começou assim. Como era um projeto gigante, gastei todo o dinheiro que eu tinha. Em 2018, consegui lançar esse trabalho. Gravei com a Orquestra Filarmônica de Praga. Quando estava no final do projeto, na Grécia, pensei: “Cara, o que vou fazer depois desse disco? Gastei todo o dinheiro que tinha na minha vida”. Foi então que pensei em fazer um show sobre o fogo. Foi no final de 2017. Quando lancei o disco da água, já comecei a fazer as músicas do projeto seguinte. O mais maluco de tudo é que a galera passou a me chamar de “Abustradamus”. As coisas que escrevi são coisas que estão acontecendo agora. Meu produtor sugeriu que eu lançasse no ano que vem, por conta da pandemia. Porém, achei melhor lançar agora, pois, se deixasse para depois, as pessoas poderiam achar que fiz o disco por causa da pandemia. No disco anterior eu já falava, em Epílogo Omindá: “Que todas as dores sejam lavadas pelo mar/ Que as lágrimas tristes virem pérolas”. Neste disco é “O fogo que destrói, mas não pode matar o amor”. O amor como o fogo para matar o que não morre, ou seja, o amor e a memória. É bem poético. É um disco forte. Tem a ver com desmatamento, morte e doença.
E depois vem o ar? Ou a terra?
Daqui a dois anos vou lançar o disco do ar. Tomara que eu seja “Abustradamus”, pois estou fazendo um som muito alegre. Muito para cima. Tomara que eu tenha razão. E daqui a quatro anos vou lançar o disco da terra. Em 2026, vou fechar com o quinto elemento, que ainda não qual será.
Não sabe qual será o quinto elemento?
Estou estudando. Ainda vou juntar alguma maluquice. Não sei se vou inventar um quinto elemento. Tem muito tempo até 2026, vou ter muito o que pensar até lá.
O extremismo da polaridade veio à tona na pandemia. Quem pensa diferente de você mostrou o que pensa. algumas lições vieram para todos, mesmo para quem acredita que a Terra é plana, não acredita na ciência, acha que a máscara não funciona. Todos aprenderam.
Em Emodoinã – Alma de Fogo, já há convidados de luxo: Criolo, Bnegão, Camila Pitanga, Fernanda Takai, entre outros. Como você reuniu esse time?
Todos os convidados participam cantando, quem toca os instrumentos sou eu. Todos toparam na hora em que liguei. Alguns gravaram em casa, outros foram ao estúdio. Outros mandaram pelo WhatsApp. Estou muito orgulhoso do resultado. E esse disco está sendo muito ouvido. É a primeira vez que um disco meu está sendo tão ouvido como este. Eu devo ter errado em algum lugar, porque a galera está toda falando bem (risos).
Também está previsto para que Emidoinã tenha uma versão audiovisual. O que você planeja?
Será uma animação. Estamos tentando negociá-la com plataformas de streaming. No disco anterior, Omindá, fui filmar em cinco países. Foi uma experiencia maravilhosa. Eu pretendia fazer um filme também com Emidoinã, mas como as letras têm muita fantasia, com meteoro, dragão, eu não teria recursos. Assistindo a Game of Thrones, vi uns castelos lá, e pensei que o meu castelo seria muito ruim (risos). Então, surgiu a ideia de fazer um desenho animado. Meu produtor, Aguinaldo Rocca, conhecia o desenhista Luciano Lagaresm, que tem a produtora Openthedoor. Fui fazer uma trilha para ele. Gostei tanto do Luciano que propus fazer a trilha de graça e apresentei o projeto de Emidoinã para ele. Ele amou. Fez uma animação animalesca. Ficou maravilhoso.
Agora você também é o Abustradamus na websérie Sbørnia em Revista. Como tem sido sua experiência como sborniano?
Sempre fui apaixonado pelo Hique Gomez e pelo Nico Nicolaiewsky. Via a banda Os Mulheres Negras como irmã do Tangos & Tragédias, assim como o Pato Fu me parece ser o irmão do Karnak. Até trabalhei na trilha sonora da animação Até que a Sbórnia nos Separe (2013). Eu também era muito amigo do Nico. Sempre tive o sonho de trabalhar com o Hique, sempre nos admiramos mutualmente. Já falei para ele que deveríamos formar alguma dupla em algum projeto. Só que nunca tivemos tempo, trabalhamos muito. Então, o Hique me convidou para o Sbørnia em Revista. Topei, mas impus a condição de não falar português em nenhum minuto. Adquiri um chroma key (técnica de isolar o fundo e reconstruí-lo digitalmente em uma filmagem) para a série e foi uma diversão. Eu amo o Hique, amo a história da Sbórnia.
Você também lançou um disco em parceria com o John Ulhoa, ABCYÇWÖK. Qual foi o ponto de partida para esse álbum?
Eu também amo o John. Nos conhecemos desde meados dos anos 1990. Ele me convidou para produzir um disco do Pato Fu, o Tem Mas Acabou (1996). Era o começo da internet, e eu e o John sempre fomos muito nerds. Eu sou mais nerd que criança de 15 anos hoje. Nasci pra ser nerd, só nasci na época errada. Daí convidei o John para produzirmos um disco da seguinte maneira: eu escrevo uma faixa, mando para ele, que faz outra coisa e me envia de volta. Só que era internet discada naquela época. Eu mandava, às vezes ele mandava outra. Tudo demorava. Às vezes levava seis meses para fazer uma música. Na pandemia, o John teve a ideia de a gente terminar aquele disco. Em um mês finalizamos.
O que é ABCYÇWÖK?
O nome da banda foi criado no mesmo esquema das músicas: eu mandava uma letra, o John outra, eu devolvia, ele mandava outra, e assim foi. Até que uma hora deu. Foi um trabalho livre, gostoso. É isso, o que me pedirem em arte, estou fazendo.
Qualquer coisa?
Por exemplo, tenho uma ideia de montar um balé com pessoas que não sabem dançar.
Como seria?
Não sei. Simplesmente me pareceu que a ideia seria incrível.
Há pouco tempo, o cantor Leo Jaime viralizou nas redes sociais ao mostrar sua aula de balé. Eis uma inspiração, que tal?
E ele dança bem! Ele é legal demais. É isso, enquanto estiver vivo, vou estar passando, cantando e cozinhando. Tentando fazer o mundo melhor como artista. Nesta pandemia, todos perceberam que a arte também alimenta as pessoas. A gente ouve muito que artista não serva para nada, não tem direito nem a batata, só que esses mesmos caras extremistas de direita que dizem isso assistem à Netflix, escutam seus pagodes com revólver, sei lá. A gente é muito importante para o planeta. É óbvio que os médicos, as enfermeiras, os entregadores de delivery, enfim, são os grandes heróis deste Brasil tão desgovernado. Mas os artistas dão muita alegria, conseguem fazer as pessoas darem uma alimentada na alma para não pirar, pois está todo mundo bem louco nesta pandemia.
Artisticamente, como está sendo a pandemia para você?
Artisticamente, eu tenho a bunda virada para a Lua. Desde que morei no México, em 2004, descobri essa coisa da internet rápida e dos estúdios móveis. Para mim, está sendo teoricamente fácil, pois já lido há anos com essa estrutura caseira para trabalhar com música. Para mim não deu problema. Claro, perdi dinheiro, não fiz show, os projetos diminuíram bastante. Mas estou conseguindo trabalhar.
Sente saudades dos shows?
Não posso mentir: gosto mesmo é de botar um espanador na bunda e subir no palco (risos). É o que eu mais gosto de fazer é subir no palco. Sinto muita falta de fazer show. A coisa triste, além disso, é que as pessoas que trabalham comigo, roadies e técnicos de som e luz, foram os que mais se deram mal. São os últimos que voltarão a trabalhar. Mesmo quando vier a vacina e terminar a pandemia, a gente vai ter que se refazer como artista. É uma tristeza.
Há alguma lição que se possa tirar desse período? A pandemia pode transformar as pessoas para melhor ou trazer a tona o que já tínhamos de ruim?
Essa pergunta é maravilhosa. O extremismo da polaridade veio a tona na pandemia. Quem pensa diferente de você mostrou o que pensa. Acho que algumas lições vieram para todos, mesmo para quem acredita que a Terra é plana, para quem não acredita na ciência, acha que a máscara não funciona. Todos aprenderam. Sempre tratei as diferenças como mote do meu trabalho. A diferença une, segundo a ciência. Os polos diferentes se unem. O que mais aflorou nesse período foram as diferenças. Mas, depois de um tempo, percebi que não era só isso que estava vindo à tona. Acho que descobrimos a incompatibilidade nesta pandemia. Uma coisa é você ser diferente da pessoa, comer sushi com macarrão, colocar o João Gordo para fazer um show com Sandy & Junior, mas isso é legal. Tentar colocar um quadrado dentro de um triângulo é que não dá. Há pessoas incompatíveis comigo ao mesmo tempo no mundo. A gente tem que aprender a viver num mundo em que se pensa diferente e se convive com incompatibilidades. Você não vai matar o cara porque ele é da umbanda ou porque não gosta de andar com um revólver.
Depois que li o livro da Djamila Ribeiro, ‘Pequeno Manual Antirracista’, percebi que, como sou branquinho de olho azul, eu não conseguia entender um monte de coisa. O que está acontecendo com as mulheres, com as pessoas trans, com a homofobia. Meu filho de 17 anos me ensina muito. A galerinha que está vindo aí vai pegar um mundo melhor, mais feminino, mais bonito.
Mas essas diferenças e incompatibilidades já não estavam acentuadas antes da pandemia?
Sim, mas a pandemia fez isso emergir. Tirou a roupa de verdade.
Como é ser artista no Brasil hoje, Em meio a cancelamentos, tensões e incompatibilidades?
Tenho 55 anos. Integro uma banda chamada Os Mulheres Negras, mas nunca tive problema com esse nome. Uma vez, na Semana da Consciência Negra, publiquei nas redes sociais a frase de uma música do Karnak, A Alma Não Tem Cor, e levei muita porrada. Sofri muito com o tempo. Depois que li o livro da Djamila Ribeiro, Pequeno Manual Antirracista, percebi que, como sou branquinho de olho azul, eu não conseguia entender um monte de coisa. O que está acontecendo com as mulheres, com as pessoas trans, com a homofobia. Meu filho de 17 anos me ensina muito. A gente que é mais velho tem de se modificar. A galerinha que está vindo aí vai pegar um mundo melhor, mais feminino, mais bonito. Sempre acreditei em duende e fada. É o começo da Era de Aquário, não tem como a gente se agarrar a coisas homofóbicas e machistas. Acho que os artistas têm como função tornar visível o invisível. Essa era, para quem acredita em fada, como eu, é de muita luz. Mas também terá muita problema. Esses anos que se seguem, daqui para a frente, vão dar muita, muita merda. Vamos passar por isso e sobreviver, pois o mundo será muito mais lindo.
Como artista, como você avalia a atuação do governo federal na cultura?
Só errou. O cinema parou, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) está paralisada. Fora nos outros setores, como colocar um militar na pasta de saúde... Posso ter opiniões diferentes de um cara que defende o Bolsonaro. Mas um sujeito que manda um abraço para o Coronel Ustra, um dos caras que, na ditadura, torturaram muita gente. Meu pai foi torturado nesse período, embora não tenha sido pelo Ustra. Esse cara simplesmente não sabe o que aconteceu. A cultura do ódio, se sustentar sobre fake news via WhatsApp... A gente está ralado, nesse sentido. Estou constatando que temos um governo que não é um governo, e sim um desgoverno, não está nem aí para as pessoas. Vivemos lutando para que as coisas sobrevivam. Tem que mudar muita coisa, e, provavelmente, nesse campo, não vai mudar tão rápido.
Por onde passa a mudança?
A questão é irmos na direção dos bens coletivos, que vão além das individualidades. Isso tem que mudar. Temos que ter mais empatia. Mais carinho com as pessoas. Sofro muito com isso. Vejo na TV que a pandemia está aumentando e a galera está tomando cerveja na Vila Madalena e andando por aí sem máscara. O ser humano é muito prepotente.
Como tem sido realizar lives? É um formato que veio para ficar?
No início da pandemia, fiz uma vaquinha e umas lives, que até deu um dinheirinho. Depois fiquei de saco cheio, pois estava trabalhando bastante. Mas acho que muita coisa veio para ficar. Antes mesmo da pandemia, já havia streaming de shows. Não só as lives, mas as pessoas estão vendo que muitas coisas funcionam online, como aulas ou terapia. Acho que muita coisa vai mudar bastante: vai ter menos escritório, as pessoas vão ter tempo de se organizar melhor, acho que vai ser bom. Uma coisa que fico pensando e que acho que poderia mudar também: por que o cara tem 12 chinelos? Ou nove calças jeans? Não precisa. Precisamos aprender a ser simples.
Quais são as suas perspectivas para 2021?
Meu projeto principal agora é conseguir guardar dinheiro, o que nunca consegui fazer (risos). Gastei todo o dinheiro da minha vida no Omindá. Não me arrependo, mas agora quero mudar. Viver com menos. Quero desacumular das coisas que não uso. Às vezes é muito difícil. Esses dias eu estava vendo um caderno do primário que minha mãe guardou. Por que eu tenho isso? Vou escanear e jogar tudo fora. Então, a pandemia ajudou a gente a ver que temos de olhar para dentro e fazermos o essencial. Vou fazer uma limpeza na minha alma. Vou continuar vivendo da minha arte, vendo música na buzina do automóvel, na moto passando na rua, tudo é música para mim, tudo pode se transformar em elemento para a criação, para a poesia. Tenho feito muita coisa, atuei em um longa-metragem com o Rodrigo Santoro para a Netflix cujo título ainda não posso divulgar, também participei de um seriado da Amazon Prime, que em princípio vai se chamar Criminal, vou fazer o Chacrinha em uma cinebiografia do Silvio Santos e também um filme previsto para este ano que adapta o romance O Clube dos Anjos, do Luis Fernando Verissimo. Serei vilão em um longa-metragem infantojuvenil sobre o Einstein. Só faço papel de bravo ou de doido. Deve ser por causa da minha cara feia (risos). Em 15 de maio, dia do meu aniversário, quero lançar meu primeiro disco de covers. E assim sigo. Quero continuar vivendo da minha arte e inventar maluquices, continuar lavando, passando e cozinhando com a minha arte. Fazer um balé com pessoas que não sabem dançar.