É comum que grupos de teatro gravem espetáculos para documentação interna ou para inscrição em algum festival. Mas o que a programação do 27º Porto Alegre em Cena destaca é uma relação mais rica e complexa com a linguagem audiovisual: um repensar das artes performáticas em direção a uma nova forma de criação, agora vista pelo público do conforto de sua casa – ou de onde quer que esteja, desde que disponha de conexão à internet.
Que teatro é esse, em que o encontro entre artistas e espetadores não é mais necessariamente presencial? Ana Luiza da Silva, que recriou em formato digital o espetáculo Terra Adorada (dia 22, às 19h), de 2019, avalia que podemos estar diante de um fenômeno novo, ainda não definido:
— Um espetáculo criado ou adaptado para uma linguagem virtual pode se valer de recursos de edição, utilização de efeitos, planos diversos. Tudo isso pode proporcionar ao público uma experiência diversa da que vive no teatro presencial, gerando outras sensações, algo entre cinema e teatro. Algo que, para mim, ainda não tem nome, mas que pode ser o início de um novo formato de arte.
Estrelado por Ana Luiza e dirigido por ela e Jezebel De Carli, Terra Adorada é o resultado de dois anos de pesquisa com os povos caingangue e guarani no Rio Grande do Sul. O novo formato permite, por exemplo, mostrar o cotidiano de crianças em uma terra indígena, pelo olhar de uma adolescente guarani, com a câmera do celular. Para Ana, essa linguagem híbrida, entre o teatro e o cinema, é também uma oportunidade para ganhar espectadores:
— A possibilidade de entrar na casa das pessoas que talvez nunca tenham ido ao teatro é um grande atrativo. Por meio dessas plataformas, teremos, talvez, um novo público interessado.
Outro trabalho, Só Tem um Problema Nesse Amor (dia 27, às 19h), atualiza o gênero da radionovela para o tempo dos podcasts. Criado especialmente para esse formato durante a pandemia, o projeto é uma audionovela "com direito a um enredo novelístico com romance, intriga, rivalidade e muita risada", nas palavras da diretora Camila Falcão, que também integra a equipe de roteiristas e de atores:
— Acredito que o público fiel das artes está superaberto ao que está sendo produzido durante a pandemia. O atrativo está no artista que cria suas performances digitais de forma simples e caseira. Existe arte. Existe verdade. Existe um artista se reinventando, seja para o divertimento ou para o discurso politico artístico.
Camila admite saudade dos espetáculos presenciais, mas acredita que a proximidade entre artistas e espectadores não se perde:
— Com certeza, queremos o encontro presencial, queremos a casa cheia. As artes cênicas estão aí vivendo do encontro presencial há séculos. O virtual veio para agregar, e o bom é perceber que mesmo sofrendo um distanciamento, o encontro existe e resiste.
Agora: será que esta época transformará a maneira como entendemos as artes cênicas daqui para frente? Para o diretor Mauricio Casiraghi e o grupo Máscara EnCena, que recriaram o espetáculo 2068 para videoteatro, rebatizado de 206820 (dia 29, às 19h), a resposta é "sim e não".
— Acreditamos que nenhuma plataforma substituirá a experiência do encontro e a experiência teatral compartilhada entre o público de forma presencial; porém, acreditamos que este diálogo entre o audiovisual e o teatro está intenso e deve gerar frutos interessantes nos processos de criação. A ideia que temos das artes cênicas seguirá sendo a mesma, mas temos que reconhecer a necessidade de uma mudança para o reencontro da arte teatral brasileira com o seu público — analisam Casiraghi e o grupo, em resposta por escrito, assinada conjuntamente.
Mas nem tudo é virtual no 27º Porto Alegre em Cena, que tem um segmento de "performances anti-aglomeração", realizadas presencialmente, mas sem contato direto com o público, em locais não divulgados para não atrair curiosos. Esses trabalhos também serão transmitidos online. Um deles é Terminal (dias 29 e 30, às 17h), do Coletivo Teatro da Crueldade. A performance de rua aborda os riscos de contaminação por covid-19 e se solidariza com a dor de familiares de pacientes internados em UTIs.
— Foi a equação dessa necessidade da presença do público com os riscos da aglomeração que levou o Teatro da Crueldade a optar pela presença intermediada pelos para-brisas dos automóveis, um formato capaz de garantir a necessária interação olho no olho do fenômeno performático e teatral, ao mesmo tempo que cumpre os protocolos de distanciamento. Já para quem assiste pela internet, a linguagem que se sobrepõe é a do audiovisual que registra o fenômeno performático — explica o diretor Marcelo Restori, também integrante do elenco.